Um dos fatores que tornam a arte um campo inesgotável é sua inevitável contaminação pelas novas tecnologias e pelos problemas por elas introduzidos. Há séculos atrás, surgimento da pintura à óleo, com sua capacidade mimética sem precedentes, tornou a imagem um meio de ostentação de poder e de bens materiais de seus proprietários. Mais tarde, a chegada dos tubos de tinta industriais trouxe novas possibilidades poéticas para a pintura de paisagem, que poderia ser realizada totalmente ao ar livre, e daí veio o impressionismo, considerado um divisor de águas na história da arte ocidental. A consolidação da revolução industrial e do racionalismo iluminista reverberou nas vanguardas que o celebravam (como o futurismo) e naquelas que o condenavam (como o dadaísmo). A fotografia e o cinema trouxeram a problemática da “aura” do objeto artístico, enquanto a TV e a indústria cultural do segundo pós-guerra abriram caminho para a pop art. A popularização do vídeo, por sua vez, transformou a maneira de se realizar e assistir a performances artísticas. Em suma, a arte sempre é transformada pelas novas tecnologias, seja por meio da criação de novas ferramentas de produção e reprodução de imagem, como também pelas questões filosóficas e sociológicas que delas emergem. Tendo isso em vista, não é difícil supor que boa parte da produção artística atual seja contaminada pela internet, as mídias sociais e as novas formas de distribuição e acesso às imagens, bem como pelo impacto provocado no cotidiano por essa atual dinâmica do ver, mostrar e se mostrar. Esse é um dos pontos de conexão entre duas artistas cariocas da atual geração que estiveram em exposição na galeria A Gentil Carioca, em individuais que abriram simultaneamente: Aleta Valente e Marcela Cantuaria.
As lutas feministas fazem parte dos trabalhos de Aleta e Marcela e de seu cotidiano. Observamos o embaralhamento entre arte e vida na medida em que essas duas mulheres lançam mão de sua produção como extensão das lutas que travam diariamente. É essa atmosfera feminista, política e engajada que primeiramente nos chamava atenção ao transitarmos entre os dois edifícios que sediam a galeria, no percurso entre uma exposição e outra. No entanto, para além desse aspecto evidente no trabalho de ambas, aqui pretende-se expor reflexões sobre como a produção dessas duas artistas é afetada pelo regime de visualidade contemporâneo.
Na atual geração de artistas, é comum observarmos a proliferação daquilo que a artista e escritora alemã Hito Steyerl nomeia imagem pobre: uma categoria de imagem cuja qualidade é tosca e sua aparência é afetada pelo fato de ser comprimida, despedaçada, remixada e reproduzida para diferentes canais de distribuição. Segundo Steyerl, a hierarquia contemporânea das imagens é determinada por características como alta definição e qualidade mimética. Novas câmeras apresentam uma série de dispositivos homogeneizadores, que corrigem automaticamente falhas e imperfeições. No entanto, as imagens pobres, cuja presença no cotidiano tornou-se constante por meio da internet, seguem o caminho oposto, colocando em xeque o fetiche da resolução e os juízos de gosto.
Talvez esse aspecto seja mais evidente na exposição de Aleta Valente, que leva para a galeria séries de imagens que tiveram destaque em sua conta do Instagram, @ex_miss_febem. A rede social é para Aleta uma plataforma de produção e distribuição de seus trabalhos. O título de sua mostra, Superexposição, refere-se ao fenômeno que ocorre na fotografia quando a abertura do diafragma da câmera permite a entrada de luz sob longa duração, ocasionando perda de definição e o surgimento de borrões – características da chamada imagem pobre. Mas Superexposição também diz respeito ao ato de se expor demasiadamente, típico das mídias sociais. Essa exibição excessiva, que borra os limites entre público e privado, é performada por Aleta em sua conta no Instagram, onde a artista utiliza o humor como artifício para abordar a precariedade, o imaginário suburbano e as relações entre centro e periferia, mas também lança mão de sua própria imagem em situações que violam o decoro para questionar a construção midiática do corpo feminino e as opressões vivenciadas pela mulher brasileira – sobretudo a mulher suburbana. O furor ocasionado pela artista na internet lhe ocasionou duas páginas suspensas – atualmente, ela utiliza o perfil @ex_miss_febem3.

Na exposição de Aleta Valente, observamos um processo de reterritorialização de imagens, quando estas são deslocadas de uma mídia social – ambiente que faz parte da vida cotidiana – para o espaço expositivo. O termo “espaço expositivo” é digno de nota neste caso. Sendo comumente associado a lugares de exibição de obras de arte, hoje ele ganha nova conotação, na medida em que as mídias sociais consolidam-se como espaços expositivos: para a exposição de si e a construção de uma autoimagem. Sendo assim, Aleta transita entre dois espaços expositivos, partindo de um lugar do cotidiano, onde suas fotoperformances são encaradas como selfies ou memes, para um espaço institucionalizado, um cubo branco que reterritorializa suas imagens e lhe confere uma espécie de aura. Esse trânsito é garantido por um processo de intermedialidade, no qual as imagens que outrora foram exibidas nas mídias sociais ganham sobrevida ao encarnarem outras mídias no espaço expositivo. A intermedialidade, no caso de Aleta, reforça os aspectos da imagem pobre. O recurso da ampliação e a impressão de imagens digitais de baixa resolução tornam mais visíveis seus pixels e a granulação característica de algumas fotografias produzidas com pouco recurso de iluminação. Esses fatores, considerados negativos na hierarquia de imagens vigente, são encarados por Aleta como parte de sua poética, que lida com o precário. Dessa maneira, imagem e mídia agem em consonância.
Igualmente feroz em seus trabalhos, Marcela Cantuaria dedica-se à pintura figurativa e à construção de alegorias. Seus trabalhos desconstroem narrativas hegemônicas e se colocam como maneiras de lidar com traumas coloniais e a violência do mundo contemporâneo. Entre as personagens de suas pinturas, destacam-se mulheres guerrilheiras e militantes da América Latina, que tiveram suas trajetórias interrompidas devido a perseguições e assassinatos. Atravessada pelo atual regime de visualidade, Marcela é inovadora ao se relacionar com um dos mais tradicionais meios de expressão artística – a pintura – e um de seus gêneros mais sacramentados – a pintura histórica.

Um aspecto comum da produção de Marcela Cantuaria é a incorporação da estética do glitch. O termo glitch se refere a falhas na decodificação de imagens digitais, que provocam ruídos em sua visualidade e criam barreiras para seu reconhecimento e consumo, tornando-as imagens pobres. Esse tipo de defeito evidencia a vulnerabilidade dos mais avançados dispositivos de produção e reprodução de imagens. A imagem é subversiva, recusa-se a existir da maneira que lhe desejam, clama por autonomia. Esses glitches são mimetizados por Marcela em suas pinturas, que exploram o potencial poético daquilo que é considerado falho, marginal. Em um texto sobre a produção da artista, a crítica e curadora Clarissa Diniz afirma que “Cantuaria provoca glitches e torna falhas as imagens legadas pelo mundo colonial, arregaçando o necessário espaço simbólico por onde brotam suas alegóricas pinturas” (leia aqui o texto na íntegra). Podemos complementar esta declaração elucidando o fato de que toda história, e toda imagem da história, é uma construção. A imagem não registra um acontecimento, ela o cria. As pinturas de Marcela Cantuaria, portanto, são acontecimentos em si. Sua produção tem como base a colagem de imagens de contextos diversos, que juntas produzem um corpo único cujo impulso é tornar visível as histórias não oficiais, fazer presente figuras ausentes no imaginário popular. O glitch, nesse sentido, afirma a incompletude de um trabalho cuja pretensão é justamente não ser completo, mas dar margem para outras versões e expor sua vulnerabilidade, característica de toda imagem e de toda história.
Outra característica marcante do trabalho de Marcela é a saturação. Suas cores vibrantes parecem requisitar atenção. As imagens nos intimam a visualiza-las e dificilmente pode-se eleger um ponto focal nas telas. Cada detalhe se impõe como um elemento essencial para a composição e para a memória que se quer produzir. A aglomeração de imagens de contextos diversos emula a experiência visual dos ambientes virtuais e das mídias sociais, onde a dinâmica do tornar visível (e tornar-se visível) provocou transformações na produção e recepção de imagens, como também fez emergir histórias marginais e uma série de disputas de narrativas. Esses embates parecem ser o motor das pinturas de Marcela, cuja vocação é atuar contra a negação do passado e dos conflitos do presente.

O que a política e a arte têm em comum, parafraseando Jacques Rancière, é o fato de ambas interferirem nos regimes de visibilidade e provocarem o dissenso. A política confere visibilidade a certos grupos e a visibilidade é algo comum ao campo da estética. A arte é por natureza um lugar do dissenso e esse aspecto é evidenciado nos trabalhos de Aleta Valente e Marcela Cantuaria. As duas artistas reordenam o visível, direcionam o olhar para as representações marginais e para os problemas existentes nos processos de produção de imagem. Por interferir no status quo, Aleta é vítima de gestos de interdição, que culminam na aniquilação das páginas virtuais onde a artista exibe sua imagem em situações afrontosas. Mas tais imagens sobrevivem ao serem transferidas para outras mídias e realocadas na galeria, onde seu status de objeto artístico não é negado. Existe uma distinção entre aquilo que é invisível e aquilo que não interessa ver, e Marcela, ao trabalhar com referências visuais de origens distintas, reprocessa e retira do anonimato imagens e situações tidas como indiferentes para a história oficial. Com suas cores vibrantes, ela joga focos luz nessas figuras esquecidas, largadas ao desaparecimento (algumas literalmente). Tais imagens sobrevivem, reverberam e problematizam aquilo que está dado.
Vivemos uma guerra das visualidades, uma série de disputas sobre o que pode ser mostrado e falado. Aleta Valente e Marcela Cantuaria atuam contra estratégias homogeneizadoras e consensuais que tentam destituir conflitos e negar a existência das imagens e narrativas que abalam o status quo. Essas artistas provocam o dissenso, questionam as convenções históricas e estéticas e, por meio da arte, fazem ver aquilo que está debaixo do visível.
“Essas artistas provocam o dissenso, questionam as convenções históricas e estéticas e, por meio da arte, fazem ver aquilo que está debaixo do visível.”
Uau , ninguém nunca fez isso, tipo ….. desde os Impressionistas hehehe
O trabalho da Marcela é muito bom.
Já o da Aleta é uma semiótica tão clichê e bobinha, que dá até vergonha.
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