Críticas

Um bispo caído e uma bala perdida

Como um artista mantém uma identidade em sua produção ao longo de duas décadas de trajetória sem cair na mesmice? É uma atitude comum da crítica dividir a produção de artistas em “fases” e não é raro para o público, ao se deparar com uma exposição de um artista consolidado, estranhar a presença de obras tão diferentes daquelas, do mesmo artista, que pertencem a outra época e são mais conhecidas por serem replicadas em livros de história da arte, palestras ou exposições. Esse não é o caso de Guga Ferraz, que em cerca de vinte anos experimentou diversas linguagens e materiais, como lambe-lambe, adesivo, performance, objeto, escultura, pintura, desenho, instalação e vídeo sem, contudo, produzir grandes desvios em sua poética. O que mantém uma unidade na produção de Guga, o único fator que não se modificou ao longo de sua trajetória, é seu interesse pela cidade, em especial a inquietação causada pela violência urbana.

Enquanto no ateliê de alguns artistas prevalece um silêncio solene e noutros o processo criativo tem como fundo trilhas musicais, Guga produz com a TV ligada, atento aos noticiários e, por vezes, a filmes de ação. As imagens de violência que aparecem em seus trabalhos são reprocessamentos das imagens consumidas por meio das mídias de massa. Esse é um dos principais pontos para compreender a unidade de sua produção, pois, ao longo dessas duas décadas, as imagens transmitidas são praticamente as mesmas, o que se modificou foram as maneiras de consumi-las. O artista, por sua vez, inova nas maneiras de reprocessa-las e desdobra-las, experimenta incessantemente. Gabinete de Soluções, sua exposição individual no Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica, evidencia esses dados ao reunir documentações de intervenções de Guga na cidade, ao lado de outros trabalhos produzidos para contextos expositivos que lidam com as mesmas temáticas: automóveis incendiados, balas perdidas, conflitos armados, processos de exclusão social, etc. Esse agrupamento aponta para a repetição e atualização das questões abordadas pelo artista desde o início da década de 2000, uma vez que os problemas urbanos continuam sendo os mesmos. Tal ideia é reforçada pela presença de duas peças: Roma de Nero (2008) e Roma de Nero Reloaded (2018). A primeira consiste no mapeamento de zonas de conflito do Rio de Janeiro, a partir de uma representação cartográfica da cidade sobre a qual são inseridos, em pontos específicos, pequenos adesivos com formato de chama, de acordo com as informações obtidas por Guga por meio dos veículos de comunicação; já a segunda é uma atualização da primeira, realizada dez anos depois, e mostra que o problema, longe de ser extinto, se espalhou para outras regiões.

Roma de Nero Reloaded, 2018

Um fator que tem se intensificado na produção recente de Guga é a reflexão sobre a ideia de alegoria. Essa virada conceitual foi o ponto chave de sua exposição individual realizada em 2018 na Arthur Fidalgo Galeria: Alegoria – ou mula sem cabeça: a cidade que casou com o Bispo. O nome faz alusão à atual situação política do Rio de Janeiro – sob gestão do bispo Marcelo Crivella – tomando como referência a lenda do folclore brasileiro sobre uma mulher que se envolveu amorosamente com um padre e foi amaldiçoada. A exposição teve como destaque a escultura de uma mula sem cabeça atravessada por um mastro, operando como alegoria da cidade que casou com o bispo. As chamas sobre o pescoço da mula, tradicionalmente presentes na iconografia dessa figura do folclore brasileiro, adquirem o formato daquelas apresentadas nos demais trabalhos de Guga, como seu bastante conhecido Ônibus Incendiado (2003) e as duas versões de Roma de Nero. Dessa maneira, as chamas, associadas à maldição originada pela perigosa união com o bispo, aludem também às cenas de violência da cidade, relacionando esses dois fatores.

Alegoria – Ou mula sem cabeça, a cidade que casou com o bispo, 2018

Em Gabinete de Soluções, o grande destaque é a escultura/alegoria Bispo Caído (2019), uma peça branca de xadrez em escala monumental, deitada sobre o chão da galeria. A peça impressiona por suas dimensões, que ultrapassam a altura do espaço expositivo (se colocada de pé), e traz à memória a derrubada de monumentos em manifestações populares. Compreendido como um contramonumento que celebra o Estado laico, o Bispo Caído trabalha com o conceito de imagem como presença de uma ausência, como representante vicária, conferindo visibilidade ao desejo coletivo de mudança no âmbito político.

Bispo Caído, 2019

Mais impressionante do que a peça em si, talvez seja sua versão em miniatura disposta em um canto da sala, contrastando com a escultura em grande escala. Trata-se, na verdade, de um estudo para o Bispo Caído, que não faria parte da exposição, até que um acontecimento trouxe uma nova camada para o trabalho. Na noite de 15 de julho de 2019, uma bala perdida penetrou na casa de Guga Ferraz e atingiu o estudo para a escultura Bispo Caído. Essa obra do acaso confere novos sentidos para a peça, que era apenas um estudo sem muito valor, e traz imediatamente à memória o caso da obra O Grande Vidro, de Marcel Duchamp, que se quebrou durante o transporte para uma galeria em Nova York, na década de 1920, e o artista, contente com o imprevisto, decretou que o trabalho estava “definitivamente inacabado”. O ready-made produzido pelo encontro acidental da bala com a escultura acentua a relação entre arte e vida na produção de Guga Ferraz e afirma a sinceridade de seu trabalho, que tem relação intrínseca com as histórias de violência na cidade. Balas perdidas sempre foram tema e até mesmo matéria prima em alguns de seus trabalhos, após serem coletadas pelo artista em sua casa, que fica próxima a uma zona de conflito, ou em seus arredores. O que torna tão singular e impactante o trabalho produzido por meio do acidente é a noção de que uma imagem crítica à expansão neopentecostal no Estado foi vítima da violência mantida e incentivada por esse mesmo Estado e, a partir de um acidental gesto iconoclasta, tornou-se outra imagem. Temos, portanto, duas imagens: o Bispo Caído, que celebra o Estado laico, e o Bispo Baleado, este não produzido pelo artista, mas pela própria cidade, redirecionando para a imagem do opressor a violência sofrida pela população, sobretudo a das favelas e periferias.

Bispo Baleado, 2019

O ato iconoclasta de derrubada de monumentos a figuras de poder, ao qual alude o Bispo Caído, ocorre em diversos lugares do mundo, não por desgosto ao objeto artístico, mas como queda simbólica da autoridade por ele representada. Destrói-se uma imagem, em alguns casos, devido à impossibilidade de aniquilação de seu referente, saciando um desejo real por meio de um corpo simulado, artificial. Dessa maneira, o Bispo Caído, que já nasce derrubado, que não cabe de pé no espaço onde foi concebido, aspira à não monumentalização dos atuais poderes, que se valem da imagem e de sua potência reprodutiva para se consolidarem (fake news, imagens de mídias sociais e robôs que simulam aliados, por exemplo) ao mesmo tempo em que interditam aquelas imagens que se contrapõem, promovem o dissenso e causam ruídos em seu projeto de controle (como exposições de artes visuais, teatro, cinema e cultos afro-brasileiros). Há uma guerra das imagens em vigência, uma série de disputas sobre o que pode ser mostrado e falado. Em meio a esse campo de batalha de visualidades, uma bala perdida que atinge uma escultura traz o dado da realidade, vai além do puramente alegórico e materializa a violência. O choque entre o poder representado pela imagem do bispo e a bala em estado não-representacional, operando para aquilo que foi designada, diferentemente dos ready-mades desviados de sua função original, produz sentidos únicos para essa peça que embaça, de maneira muito singular, as fronteiras entre arte e vida. Talvez ela seja o que Guga Ferraz produziu de mais potente em seu empenho para relacionar arte e cidade, uma vez que a cidade, com sua violência, tornou-se (co)autora do trabalho. Em uma entrevista concedida para a revista Arte & Ensaios em 2013, o artista afirma que “a cidade é um pano de fundo e ao mesmo tempo é o sujeito”. Eis aqui a autenticação dessa sentença.

  • Imagens da noite de 15 de julho de 2019

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