Guga Ferraz realiza sua primeira individual na Artur Fidalgo Galeria apresentando trabalhos inéditos, realizados desde 2014. Reconhecido principalmente pelas intervenções de caráter crítico e dissensual que executa em espaços públicos desde o ano 2000, em sua exposição, composta por desenhos e esculturas, Guga não se desvencilha de seu processo de investigação sobre / na cidade, a começar pelo título: Alegoria – ou mula sem cabeça: a cidade que casou com o Bispo. O nome faz alusão à atual situação política do Rio de Janeiro – sob gestão do bispo Marcelo Crivella – tomando como referência a lenda do folclore brasileiro sobre uma mulher que se envolveu amorosamente com um padre e foi amaldiçoada. Alegoria se refere tanto aos signos presentes em seus trabalhos – que operam como alegorias da violência e do caos – quanto à dimensão carnavalesca presente na produção em questão, que adota tom irônico ao apresentar imagens de armas coloridas, semelhantes aos carros que desfilam na Sapucaí.
Em 2003, Guga realizou pela primeira vez o Ônibus Incendiado, como intitula uma série de interferências em placas de sinalização de pontos de ônibus, nas quais o artista colou adesivos em formato de chamas de fogo para alertar sobre os recorrentes incêndios a veículos que vinham ocorrendo na cidade naquele ano. Tal trabalho, que se tornou sua marca registrada, se desdobra, na exposição, em desenhos e esculturas em madeira com formato de chamas de variados tamanhos, dispostas sobre o chão da galeria. Além da recorrente cor vermelha, as esculturas são preenchidas por diferentes padrões geométricos e figurativos, entre eles imagens do céu, que ao serem submetidas ao formato das chamas evocam a dualidade céu/inferno.
O processo criativo de Guga é atravessado pelo contato com imagens midiáticas, sobretudo notícias policiais. Tal processo é evidenciado em Meninos de Ouro, desenho composto pela repetição de imagens apropriadas da cobertura sobre a operação da Polícia Militar na Vila Cruzeiro em 2010. A icônica cena de traficantes fugindo da Vila Cruzeiro pela mata que a liga ao Complexo do Alemão, reproduzida incessantemente pelos veículos de comunicação, é multiplicada por Guga sobre a superfície do papel, onde suas silhuetas são preenchidas com pigmento preto e dourado, que se alternam e se sobrepõem. As figuras sugerem um movimento vertical, formando uma massa pictórica sobre a base do papel devido a sua sobreposição e, gradativamente, surgem zonas de respiro ao chegar ao topo, onde as silhuetas, antes indistinguíveis, adquirem maior individualidade. A repetição é um recurso também explorado nos outros desenhos apresentados, como Eat Peace e Moisés, onde silhuetas de traficantes ou de terroristas – no caso de Eat Peace – se misturam a desenhos de muros, armas e chamas de fogo – alegorias do momento que vivemos, de intervenção militar e polarizações em diferentes esferas, além da já enraizada violência urbana. O efeito de multiplicação é adquirido através do uso de stenceis. Desta maneira, Guga incorpora em seu trabalho na galeria uma técnica de reprodução que dialoga com a linguagem das ruas, o que reforça a relação intrínseca de seus desenhos com sua trajetória no campo da intervenção urbana.
Chama atenção, em meio aos desenhos e trabalhos tridimensionais dispostos ao chão, a escultura de uma mula sem cabeça atravessada por um mastro, que flutua sobre a sala operando como alegoria não apenas da cidade que casou com o bispo, como também da própria exposição, uma vez que tal trabalho sintetiza os questionamentos levantados pelo artista na concepção da mostra. As chamas sobre o pescoço da mula, tradicionalmente presentes na iconografia dessa figura do folclore brasileiro, adquirem o mesmo formato daquelas apresentadas nos demais trabalhos de Guga, possibilitando um diálogo formal com as demais peças expostas – ainda que essa escultura se destaque devido ao vibrante azul que preenche seu corpo e ao grau de naturalismo com que é executada.
A alegoria, que sempre teve lugar privilegiado na produção de Guga Ferraz, é o recurso metafórico através do qual o artista aponta para conflitos da / na cidade. Seja através da irônica estetização da violência na galeria ou das mensagens que espalha na rua, a produção de Guga apresenta um retrato de seu tempo. A cidade, tratada sempre como sujeito, atravessa e é atravessada pelo artista, cujo olhar é atraído para o que está à margem, para as histórias não contadas, para aquilo sobre o que não se deseja falar.
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