A arte só existe no exercício de intersubjetividade, no intercâmbio entre artista e público. Mesmo quando uma obra é concebida em isolamento, ela só tem sua existência consolidada como arte quando mostrada, e então, aquilo que foi produzido a partir dos desejos e sentimentos pessoais de uma artista, deixa de ser particular e se torna coletivo. Deixa de dizer respeito apenas à vida da autora e passa a ser percebida e interpretada com base nas experiências pessoais do espectador, como se ela lhe pertencesse.
O que torna esse exercício de alteridade, permutação e transposição de sentidos tão especial no trabalho de Graziella Bonisolo é o fato de ser construído a partir de memórias das casas onde morou ou que fizeram parte de sua vida, em especial a casa de sua avó. São trabalhos respaldados em memórias não só suas, mas também de outras pessoas de sua família, em particular das mulheres que habitaram aquele lar. Às vezes, dizem respeito a um passado no qual a artista ainda sequer existia. Imagens são despertadas por objetos, lugares, fotografias, e as memórias de Graziella acabam por confundir-se com as de seus familiares e antepassados. Elas ganham forma em seu trabalho, chegando enfim ao público, que produz outros sentidos ao confrontá-las com suas próprias memórias.
A casa é nosso lugar mais íntimo, onde nos despimos das aparências que sustentamos nos lugares de uso coletivo, onde somos em nossa essência. Imprimimos marcas da nossa subjetividade quando a construímos, quando a reformamos ou nos usos cotidianos. Um trabalho artístico autobiográfico e desenvolvido a partir da experiência tão íntima da casa, longe de restringir-se a sentidos pessoais, faz desse particular algo que envolve e mobiliza os sentidos de qualquer sujeito. Sendo assim, o trabalho de Graziella tem a abstração não apenas como estratégia para provocar o outro a produzir suas próprias assimilações e fantasias, mas como condição de existência, uma vez que é elaborado a partir de imagens internas, que são abstratas e fragmentadas. A memória, ora nítida, ora nebulosa, aparece como lampejos e é materializada com suas ambiguidades e incompletudes nos desenhos, pinturas e instalações de Graziella. Em alguns trabalhos, podem ser percebidas formas que são familiares e evocam o imaginário doméstico. Já outros relacionam-se mais com a percepção do corpo como uma casa. Pois é o corpo nossa primeira e eterna morada, desde o momento em que habitamos o útero de nossas mães até o momento em que nos situamos no mundo e compreendemos o corpo como abrigo do nosso ser. O corpo é também a casa dos nossos devaneios, memórias e sonhos, onde moram nossas imagens íntimas.
É desse entendimento que surge o vermelho que prenomina no trabalho de Graziella. O vermelho do corpo, das vísceras, do sangue – inclusive o menstrual e o do parto, essencialmente femininos. O vermelho transporta imagens internas e estas fluem como se percorressem artérias. A linha do desenho ganha corpo e materializa-se no espaço por meio de fios. Efetua-se a espacialização da cor vermelha em formas complexas que podem remeter tanto ao doméstico como ao corpo, alimentando a correlação entre esses dois lugares. Onde se inserem, esses fios adaptam-se e integram-se ao espaço arquitetônico. Produzem tramas, como teias. Nossos corpos percorrem e mergulham no vermelho de Graziella, mobilizados pelo afeto e pulsação dessa cor, entregues aos sentidos, memórias e delírios por ela despertados.
Texto para a exposição individual de Graziella Bonisolo no espaço Grupius, em Caldas da Rainha, Portugal (abril e maio de 2024).







