“É bonita a festa, pá!”: a experiência da imigração brasileira na Bienal de Cerveira, Portugal, 2024

[Artigo apresentado originalmente no II Encontro Geopolíticas Institucionais, Paço Imperial, Rio de Janeiro, 2024]

Portugal se tornou, nos últimos anos, ponto de chegada de dezenas de milhares de imigrantes, entre eles brasileiros, que por fatores como a língua ou laços familiares escolheram o país para viver. Nesse contexto, surgiu em Lisboa o espaço de arte NowHere, gerido por um coletivo de agentes culturais brasileiros que passaram a viver na capital portuguesa: a curadora Cristiana Tejo, a artista Luiza Baldan, o produtor Rafael Moretti e a artista Marilá Dardot (que atualmente reside no México, mas participa à distância das atividades). O espaço foi fundado em 2018, um ano turbulento no cenário político brasileiro, com acontecimentos como a eleição do político de extrema-direita Jair Messias Bolsonaro à presidência da república e o assassinato da vereadora Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes – fatores apontados por parte dos imigrantes brasileiros como motivações de sua saída do país. Para artistas e produtores culturais podem ser somados ainda eventos como o fim do Ministério da Cultura pelo governo Bolsonaro e a constante perseguição a profissionais das artes. O processo acelerado de migração de brasileiros a Portugal é atestado por dados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (2020): em 2019 havia 151 mil brasileiros com residência regularizada em Portugal e em 2023 esse número subiu para quase 400 mil (EXPRESSO, 2023).

No âmbito de minhas atividades como bolsista do Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior da CAPES, entre dezembro de 2023 e maio de 2024, estive vinculado ao Instituto de História da Arte da Universidade Nova de Lisboa, sob supervisão de Cristiana Tejo, que é pesquisadora associada à instituição. Seguindo caminhos já trilhados no Brasil nos últimos anos, em minha tese de doutorado sobre espaços autônomos de arte e minha atuação em tais ambientes no papel de curador, a pesquisa realizada em Lisboa se debruçou sobre espaços experimentais de arte geridos por imigrantes brasileiros, se concentrando no NowHere como estudo de caso.

Para quem chega em Lisboa pela primeira vez – como ocorreu comigo na condição de bolsista – pode ser surpreendente a marcante presença não apenas de imigrantes brasileiros, mas da cultura brasileira em todo canto. Esse fenômeno é perceptível na culinária, nas músicas que tocam nas rádios, no Carnaval, nos artistas de rua e nas inúmeras rodas de samba vistas na cidade.

Nesse contexto, incluem-se espaços de arte contemporânea geridos por imigrantes brasileiros ou onde percebe-se a atuação de artistas brasileiros – residentes ou em passagem por Lisboa. Listarei brevemente alguns projetos que conheci em andanças pela cidade, antes de abordar o espaço NowHere, eleito como objeto de pesquisa:

A Nova Banca Galeria, localizada nos bairros Areeiro e Avalade, é a primeira galeria de arte de Lisboa a funcionar na estrutura de uma banca de jornais. O projeto é do casal de pernambucanos Manuel Mendonça, publicitário e artista, e Marina Borba, designer e professora, que vivem em Lisboa desde 2016. Inaugurada em 2020, a Nova Banca Galeria exibe e comercializa obras de artistas de diferentes nacionalidades, dando oportunidade para aqueles que ainda não conquistaram inserção no meio artístico hegemônico. Lá podem ser vistas obras em diferentes meios, como pinturas, gravuras e fotografias. É uma estratégia interessante, pois há um custo mais baixo de manutenção do que uma galeria tradicional, além de se situar em vias de grande circulação de transeuntes.

A partir dessa experiência, o fotógrafo carioca Bruno Veiga criou uma espécie de filial da Nova Banca, chamada a Loja da Calçada Portuguesa. Há quase duas décadas ele desenvolve uma série fotográfica em torno dos paralelos entre as calçadas do Rio e as de Portugal. Na banca aberta no bairro Saldanha, Veiga expõe e vende o próprio trabalho, num exemplo mais direto de autogestão.

No Areeiro, também se encontra o apartamento do curador e art advisor canadense Simon Watson, gestor da plataforma Luz Air, que tem atuação focada em artistas brasileiros, fornecendo orientação, planejamento de carreira, organização de exposições e facilitando sua inserção internacional. Nesse imóvel, ele recebe artistas brasileiros que realizam em média 3 meses de residência e atividades abertas ao público e a colecionadores. No período em Lisboa, testemunhei a residência do artista brasiliense João Trevisan, cujo trabalho eu já acompanhava no Brasil. Após o período de residência, Trevisan realizou sua primeira exposição em Paris, na RX&SLAG, com curadoria de Simon, reunindo os trabalhos produzidos em Lisboa.

Embora tenha conhecido outros espaços geridos por brasileiros ou centrados em artistas brasileiros, como a galeria Coletivo Amarelo, optei por destacar acima aqueles que visitei com mais frequência durante o período de pesquisa em Lisboa. Ressalto também que esses espaços estavam na órbita de minha investigação, mas em razão da curta duração da bolsa optei por eleger apenas o NowHere como objeto de estudo, sobre o qual me aprofundarei a seguir.

A fundação do espaço NowHere em 2018, no contexto das recentes experiências de imigração, adquire relevância por ter como fio condutor de suas ações o debate sobre o lugar do artista imigrante em Portugal.

Com sua dimensão comunitária, o NowHere almeja transformar o sentimento de não-lugar (nowhere), gerado pela experiência da imigração, em um uso positivo das potencialidades do aqui e do agora (now here). O espaço se tornou um lugar de acolhimento de artistas brasileiros em Portugal, oferecendo tutorias, acompanhamento crítico, leitura e revisão de portfólio, auxílio à formatação de projetos para editais locais e afirma-se também no circuito de espaços expositivos.

Durante seis meses de trabalho de campo, acompanhei presencialmente todas as atividades realizadas no/pelo NowHere: tutorias semanais com orientação de Cristiana Tejo, nas quais são realizadas orientações importantes para a consolidação da carreira dos artistas no cenário Português; a residência artística de inverno, que este ano teve como tema a arte têxtil; palestras com artistas brasileiros que estavam de passagem por Lisboa, como Eleonora Fabião, Flávio Cerqueira, Ana Hupe e Pedro Victor Brandão; montagem e abertura de exposições, como as  do pernambucano Manuel Quitério e da mineira Flavia Regaldo, ambos residentes em Lisboa; exibições de filmes; processos colaborativos, como a organização de um livro de fotografias de Luiza Baldan e Olivia Borges a partir de sugestões da comunidade do NowHere.

Exposição Depois da partida de Flavia Regaldo no NowHere, maio de 2024. Fotografia do autor.

Busquei estar no NowHere não apenas como um observador, mas me envolvi nas atividades do espaço. Além de ser participante ativo nas tutorias semanais com artistas e de ter a oportunidade de apresentar um recorte do meu trabalho para a comunidade, um momento relevante dessa experiência foi escrever o texto crítico para a exposição de Graziella Bonisolo, Mergulho do Vermelho, que ocorreu em abril de 2024 na cidade de Caldas da Rainha. Graziella é uma artista carioca que faz parte da comunidade do NowHere e tive a oportunidade de conhecê-la e me envolver com seu trabalho nas tutorias semanais.

O período de pesquisa em Lisboa coincidiu com um calendário cultural marcado pelas celebrações de 50 anos do fim da ditadura em Portugal – período conhecido como Estado Novo. Entre os eventos, se destaca a Bienal Internacional de Arte de Cerveira – em Vila Nova de Cerveira, região do Minho, no norte do país – cujo tema para 2024 propõe a reflexão És livre?, sendo a liberdade o fio condutor do programa expositivo, organizado em ciclos.

Um desses ciclos conta com uma mostra com curadoria coletiva de Helena Mendes Pereira (curadora portuguesa, diretora-geral da Zet Galery, situada na cidade de Braga) e Cristiana Tejo + NowHere, intitulada É bonita a festa, pá!. O título cita e modifica o tempo verbal da canção Tanto mar, composta por Chico Buarque, inspirado pela Revolução dos Cravos que ocorreu em 25 de abril de 1974 em Portugal, dando início ao processo de democratização do país (a letra original diz “Foi bonita a festa, pá!”). A mostra propõe uma cartografia possível da presença de artistas brasileiros em Portugal, com um recorte que vai da Revolução dos Cravos à atualidade. Participam 42 artistas que, de 25 de abril de 1974 para cá, viveram, vivem ou estabeleceram laços temporários com Portugal.

Vista da exposição É bonita a festa, pá!, Fundação Bienal de Cerveira, março de 2024. Fotografia do autor.

A escolha de 25 de abril de 1974 como marco inicial não é mera causalidade, em razão da efeméride, mas é fruto de uma investigação sobre a participação de artistas brasileiros no processo revolucionário em Portugal. Com o fim do regime ditatorial que durou 48 anos, o país entrou na rota de exílios de brasileiros que desejavam fugir da ditadura militar, ainda em vigor no Brasil, sendo ponto de chegada ou de passagem para aqueles que iam para outras nações.

Um dia após a Revolução dos Cravos, em 26 de abril de 1974, chegou em Lisboa o cineasta Glauber Rocha, interessado em acompanhar e filmar os acontecimentos. Rocha foi o único brasileiro a colaborar em um filme coletivo chamado As armas e o povo, assinado por um coletivo de trabalhadores do cinema, que registra os primeiros dias de liberdade em Portugal. Nesse período ele também foi convidado a realizar uma sessão de estreia de sua obra Terra em Transe, que até então era um filme proibido.

Artur Barrio, artista visual que nasceu na cidade do Porto, mas deixou seu país com a família aos 10 anos de idade, retornaria em julho de 1974, também motivado pela Revolução dos Cravos, e permaneceu por 4 meses, realizando alguns trabalhos artísticos antes de se exilar em Paris – e ainda voltaria outras vezes a Portugal nos anos 1970.

Após ser preso e torturado por dois meses pelos militares no Brasil, o dramaturgo José Celso Martinez desembarcou em Portugal com 15 membros do Teatro Oficina em 28 de setembro de 1974, exilando-se no país até 1978.

O diretor teatral Augusto Boal, exilado na Argentina desde 1971, teve de sair de lá em 1976 quando o país também entrou em uma nova ditadura. Boal permaneceu em Lisboa até 1978, quando seguiu para a França.

As recentes imigrações de artistas brasileiros para Portugal se inserem em um contexto distinto. O Brasil não entrou em uma nova ditadura, mas o cenário que produziu o golpe à presidenta Dilma Rousseff em 2016 e a eleição de Bolsonaro em 2018 fez com que parte dos agentes culturais brasileiros em Portugal se sentissem como imigrantes políticos. O ambiente por eles encontrado também é distinto: Portugal inserido agora na União Europeia (desde 1986) e enfrentando problemas de gentrificação e uma crise habitacional.

É bonita a festa, pá! se propõe a produzir diálogos entre essas temporalidades distintas. A mostra reúne documentações das passagens de Boal, Martinez e Rocha por Portugal nos anos 1970, trabalhos de Barrio realizados em território português na mesma década, e trabalhos realizados nos anos mais recentes por artistas brasileiros imigrantes ou em passagem por Portugal (em residências artísticas ou pós-doutorado, por exemplo). Se no conjunto dos anos 1970 percebe-se atravessamentos do cenário revolucionário português e da experiência do exílio, nos trabalhos mais recentes são perceptíveis a vontade de se discutir: o corpo imigrante, as marcas da colonização e da escravidão, o contexto político brasileiro dos últimos anos, a precarização do trabalho, as diversas dimensões da língua portuguesa, além de trabalhos que abordam, com distanciamento temporal, o Estado Novo.

Sonia Távora, Entre Mundos (da série além dos muros do jardim), 2019-2024. Óxido de ferro. Fotografia da artista.

A intervenção de Sonia Távora, Entre Mundos, da série além dos muros do jardim (2019),situava-se na fronteira entre a galeria e o hall de entrada, abrindo a exposição. Trata-se de uma frase homônima ao título gravada no chão com óxido de ferro em pó, cuja existência condicionava-se apenas à abertura da exposição. Conforme o público entrava no espaço expositivo, atravessando a fronteira entre dentro e fora demarcada por Távora, a frase se desmanchava, o pó era levado pelos pés, espalhava-se pelo chão, contaminava o espaço e, no fim, as pessoas o levavam consigo, nos resquícios presentes nas solas de seus calçados. O trabalho sinaliza a fragilidade das fronteiras e evoca as marcas identitárias deixadas pelos corpos que as cruzam, fazendo do não-lugar um lugar.

Hilda de Paulo, se não puder também dançar, esta não é a minha revolução, 2019. Tinta automotiva sobre madeira. Óxido de ferro. Fotografia do autor.

A palavra escrita também ganha protagonismo no trabalho apresentado por Hilda de Paulo. A artista instalou na parede do espaço expositivo uma frase escrita originalmente em inglês pela ativista política lituana Emma Goldman, “Se não puder também dançar, esta não é a minha revolução”. Esse texto em cores vermelhas sobre a parede branca ganha novos sentidos quando reproduzido por Hilda, que, além de imigrante, é uma mulher trans, portanto, é duplamente um corpo que foge às normatizações.

Jaime Lauriano, Escravidão e Liberdade, 2018. Impressão sobre tecido / Felipe Barbosa, O Café e o Açúcar estão na Origem, 2015-2024. Corrente feita com embalagens de café e açúcar. Fotografia do autor.

Dentre os trabalhos que abordam a experiência colonial, podemos destacar os de Jaime Lauriano e Felipe Barbosa. Em Escravidão e liberdade (2018), Lauriano sobrepõe a um mapa mundi de fundo preto e traços brancos palavras-chaves associadas à história da escravidão e aos traumas coloniais, dando a ver aspectos negligenciados em grande parte das narrativas hegemônicas. Já Felipe Barbosa, desde que passou a morar em Coimbra, coleciona embalagens de café e açúcar, produtos representativos dos primeiros ciclos econômicos do Brasil colonial e que moldaram nossa estrutura social. As embalagens são manipuladas de modo escultórico, formando uma corrente que é vista sempre maior, a cada exposição da qual participa. Trata-se de um trabalho em progresso que produz uma espécie de movimento sem fim, em alusão à permanência de traumas e de processos que não são encerrados, mas apenas se transformam.

Olhares críticos sobre a história das mulheres são lançados por trabalhos como Biografêmeas, de Sandra Lessa, que recupera histórias de vidas de mulheres que foram vítimas da inquisição em Portugal. As biografias são encenadas em locais inquisitoriais e tocadas pela ficção, pela imaginação, já que nos documentos da Inquisição só se encontram os nomes, as acusações e as penalidades sofridas pelas acusadas. Já Marilá Dardot recupera livros de escritoras que foram proibidos e confiscados durante o Estado Novo em Portugal. Ela estampa lençóis com trechos desses livros, exaltando alguns assuntos e palavras que foram objeto de censura. A obra reivindica o direito de falar do corpo, do desejo e da liberdade. Liberdade esta que também é o tema do trabalho de Rosana Ricalde, que exibiu uma instalação composta por 70 dicionários de várias línguas, publicados em diversas épocas, em que a palavra liberdade é retirada e recolocada num quadro, num gesto que evoca a facilidade com que a liberdade pode ser suprimida.

Yuli Anastassakis, Tempos de Agora, 2021. Linha de algodão bordada sobre linho. Fotografia do autor.

Tempos de Agora, de Yuli Anastassakis, produz uma espécie de inventário da percepção dos brasileiros acerca da situação do país desde 2016, época do impeachment da presidenta Dilma Roussef. A artista reúne frases comumente ditas e escritas – sobretudo nas mídias socias – para qualificar tal período, como “tempos sombrios”, “tempos conturbados”, “tempos de golpe”. Essas frases são delicadamente bordadas com linhas vermelhas sobre pequenos pedaços de linho e instaladas na parede do espaço expositivo, solicitando que o espectador de aproxime para que consiga ler. A artista produz um exercício de anacronismo, compreendendo que tais frases emitidas frequentemente entre 2016 e 2022 poderiam também qualificar tempos passados, como aquele da ditadura e, por que não, a atualidade? Os tempos de agora, como coloca o título, continuam sendo sombrios, conturbados, de golpes, por razões diversas daquelas anteriores. É justamente esse exercício de aproximar passado e presente, atentando-se a continuidades e rupturas, semelhanças e diferenças, que é proposto em É bonita a festa, pá!.

Por fim, deve-se ressaltar que o convite da Fundação Bienal de Cerveira a Cristiana Tejo para capitanear a curadoria de uma das exposições ao lado de Helena Almeida, com colaboração dos outros gestores do NowHere, consolida a integração do espaço e de seus agentes ao circuito artístico português. O tema da mostra, surgido como reação ao título-provocação da Bienal, És livre?, e em diálogo com o cinquentenário do fim da ditadura, joga luz sobre a força da presença brasileira em Portugal, em especial no campo da cultura.

Referências

SEF/GEPF. Relatório de Imigração, Fronteiras e Asilo 2019. Oeiras: Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, 2020. Disponível em: https://sefstat.sef.pt/Docs/Rifa2019.pdf. Acesso: 15/04/2024.

EXPRESSO (jornal online). Quase 400 mil brasileiros residem legalmente em Portugal. 20 de setembro de 2023. Disponível em: https://expresso.pt/sociedade/migracoes/2023-09-20-Quase-400-mil-brasileiros-residem-legalmente-em-Portugal-d54a33c7. Acesso: 15/04/2024.

PEREIRA, Helena Mendes; TEJO, Cristiana. É bonita a festa, pá! Vila Nova de Cerveira: Fundação Bienal de Arte de Cerveira, 2024.

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