Imagem, natureza e apreensão do efêmero: das gravuras de Hokusai às fotografias de Jeff Wall

No século XIX o Japão experimentou profundas mudanças políticas e sociais com a abertura do país para o comércio exterior, após um longo período de isolamento. Isso culminou, a partir da metade do século, em um processo de ocidentalização do Japão. Mas houve, de certa maneira, uma reciprocidade nesse processo. A imagem do Japão e a sua produção material causaram grande impacto na Europa, que é percebido principalmente na influência que as gravuras Ukiyo-e tiveram sobre o Impressionismo.

No momento do surgimento do Impressionismo, as grandes novidades da Europa eram a fotografia e o japonismo. Os impressionistas, que lidavam com a velocidade, a tecnologia e a subjetivação do espaço pictórico, encontraram nas gravuras japonesas um importante interesse em comum: a apreensão do efêmero.

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Hokusai, A grande onda de Kanagawa (c. 1829-1833)

Hokusai é um importante nome da arte japonesa do século XIX e grande exemplo de artista que lida com a apreensão do efêmero. A grande onda de Kanagawa (c. 1829-1833), talvez sua obra mais conhecida, revela sua perícia em captar um momento instantâneo. A mesma habilidade é demonstrada em Viajantes surpreendidos por um vento súbito em Ejiri (c. 1832), que faz parte da mesma série, Trinta e seis vistas do Monte Fuji. A paisagem e as cenas do cotidiano eram temas comuns na arte japonesa do século XIX e Hokusai cria nessa gravura uma mistura desses dois gêneros em uma composição que valoriza o movimento e o ritmo, garantidos pela gradação de tamanho das figuras, que cria também uma ilusão de profundidade. Além de captar um instante, Hokusai lida com a subjetivação do espaço, que pode ser percebida nos diferentes tratamentos que dá ao Monte Fuji e a todo o cenário ao seu redor em diferentes obras da série.

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Hokusai, Viajantes surpreendidos por um vento súbito em Ejiri (c. 1832)

Ao analisar o tratamento dado às figuras humanas em meio à sublime e furiosa paisagem, pode-se dizer que Viajantes surpreendidos por um vento súbito em Ejiri, assim como A grande onda de Kanagawa, tratam da fragilidade humana diante da força da natureza. Hokusai utiliza uma técnica chamada bakashi, na qual ele remove parcialmente a cor do bloco de madeira antes da gravação. Dessa maneira ele consegue criar uma sutil gradação de cores que pode ser percebida no céu e no Monte Fuji.

Jeff Wall, diferentemente de Hokusai e até mesmo dos fotógrafos de sua época, não trabalha com a captação de um instante, mas de um conjunto deles. Por meio da manipulação desses diferentes instantes, Wall cria cenas únicas, fantasiosas, que, porém, tentam parecer reais, imagens cotidianas.

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Jeff Wall, Uma súbita rajada de vento (à maneira de Hokusai), 1993

Em Uma súbita rajada de vento (à maneira de Hokusai), de 1993, Wall utiliza atores, figurinos e cenários para criar uma releitura da obra do gravador japonês. A cena do Japão do século XIX é recriada em uma área rural da periferia de Vancouver no final do século XX. O tema, escala e a composição da obra original é combinada com a tecnologia contemporânea. Como pinceladas, o artista elaborou cuidadosamente a cena em um processo que durou mais de um ano e passou por diversas etapas, como a captação e a digitalização mais de uma centena de fotografias, para então ser realizada a montagem. A imagem do rio tem uma luminosidade especial obtida por meio da impressão da fotografia com transparência e sua exibição em uma caixa de luz, técnica utilizada pelo artista após passar a observar anúncios em pontos de ônibus no final da década de 1970.

Jeff Wall mantém a utilização de cores frias como na obra original, mas cria um grande contraste com a gravura de Hokusai ao retratar a natureza não mais em seu estado bruto. O verde, tão marcante na obra de Hokusai, aqui pouco aparece. No lugar do Monte Fuji, há ao fundo a presença de modernas construções, enquanto no primeiro plano há o campo, porém com um grande vazio, caracterizando uma sociedade do final século XX que há muito tempo já trocou a vida rural pela urbana e se vê diante de um processo interminável de industrialização, urbanização e poluição. Se Hokusai retrata a fragilidade humana diante da força da natureza, Jeff Wall, ao contrário, retrata a dominação da natureza pelo homem.

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Jeff Wall, Uma súbita rajada de vento (à maneira de Hokusai), 1993 (detalhe).

Na gravura de Hokusai, os personagens são trabalhadores rurais, enquanto Jeff Wall inclui no primeiro plano de sua obra atores vestidos com um estilo de roupa que é associada às zonas urbanas, causando uma desconexão entre os personagens e aquele espaço e podendo remeter também ao deslocamento que é realizado diariamente para se chegar ao local de trabalho por aqueles que moram em zonas periféricas.

Partindo para uma análise mais técnica, os dois artistas utilizam soluções originais, disponíveis na época de cada um, para chegar a resultados inusitados. De um lado, Hokusai utiliza a técnica chamada bakashi para criar uma sutil gradação de cores, enquanto Jeff Wall imprime a fotografia como transparência e utiliza uma caixa de luz para criar um efeito luminoso no rio. Um ponto em comum entre os dois artistas é a multiplicidade de matrizes: Wall utiliza diferentes fotografias para chegar a uma composição única com o artifício da montagem. Hokusai, pode-se dizer, parte de um princípio parecido, pois para chegar à multiplicidade de cores na xilogravura é necessária a utilização de diferentes matrizes.

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Jeff Wall, Uma súbita rajada de vento (à maneira de Hokusai), 1993 (detalhe).

Ao longo de quase dois séculos as técnicas de reprodução de imagens passaram por imensas transformações. Enquanto Hokusai realizava Viajantes surpreendidos por um vento súbito em Ejiri, a fotografia ainda estava florescendo. Hoje, com artistas como Jeff Wall, a fotografia deixa de ser um mero documento de acontecimentos reais e passa a ser um instrumento para a criação de cenas fantasiosas, manipuladas por meio de técnicas de montagem avançadas. Assim como Hokusai utilizava o seu desenho e diferentes matrizes para imprimir instantes de modo subjetivo, Jeff Wall se apropria do poder da fotografia de capturar um momento e das ferramentas oferecidas pela tecnologia digital para construir cenas à sua maneira.

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