O lugar da periferia na arte contemporânea

Em 1965, Hélio Oiticica era impedido de entrar no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro acompanhado por integrantes da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, durante a abertura da emblemática exposição Opinião 65. Tratava-se da primeira apresentação pública de seus Parangolés, capas coloridas, faixas e tendas de pano que são vestidas ou seguradas pelo participante (que não mais poderia ser chamado de espectador) e reagem a seus movimentos. Este é o ponto culminante da pesquisa de Oiticica acerca da liberação da cor da bidimensionalidade do quadro. Corpo e obra passam a ser um só e o público deixa de ser passivo para tornar-se o motor do trabalho artístico. Contudo, aqueles corpos periféricos são impedidos de entrar no museu e a ação ocorre nos jardins do MAM. Poderíamos debater o quão grandes foram as mudanças de lá para cá, mais de 50 anos depois.

A única maneira de ver o suburbano em instituições artísticas era através de sua representação em quadros de Di Cavalcanti, por exemplo, ou em trabalhos de Rubens Gerchman, como a famosa Lindonéia, a Gioconda dos Subúrbios. O advento da arte moderna no Brasil, na primeira metade do século XX, trouxe consigo um interesse iconográfico dos artistas pelos marginalizados, como o nordestino, o suburbano e a classe operária. Contudo, o museu, instituição que tem origem na Revolução Francesa com intuito, pelo menos em tese, de tornar acessível às classes menos abastadas um patrimônio que antes era de privilégio exclusivo da aristocracia e do clero, acaba constituindo-se como espaço de prestígio social e erudição, afastando-se das camadas populares. A situação se agrava se pensarmos para além do público e buscarmos produtores de arte fora do eixo Centro-Zona Sul.

Desde a década de 1990, o número de instituições artísticas no Rio de Janeiro tem crescido e junto a elas vêm sendo elaborados importantes projetos educativos que buscam atender, principalmente, a escolas públicas e pessoas de zonas periféricas. Ainda falando da década de 1990, ela também marca o retorno das grandes exposições internacionais na cidade, que, com seu apelo de espetáculo, atraem aos museus e centros culturais milhares de pessoas de diversas regiões e camadas sociais. Ainda que haja muitas barreiras a serem discutidas, como a distância física entre essas instituições e o subúrbio, o valor que algumas cobram pelo ingresso e a dificuldade de diálogo de certas mostras com as camadas populares, é inegável que nos últimos anos o público frequentador de exposições deixou de ter rosto e se massificou, embora possamos identificar nessa situação uma lógica do capital e do espetáculo.

Com a implantação do sistema de cotas nas universidades brasileiras, vimos crescer nos últimos anos o número de estudantes negros e de zonas periféricas em cursos de artes, e, consequentemente, assistimos ao começo de uma mudança no circuito artístico. O subúrbio e a favela têm deixado de ser objetos de fetiche de artistas privilegiados socialmente e passaram a ser tratados por aqueles que assumem esses locais de fala.

A exposição Suburbanidades é um sintoma dessas mudanças. A mostra reúne artistas de fora do eixo Centro-Zona Sul e celebra a diversidade da arte contemporânea produzida no subúrbio. Artistas de variadas localidades apresentam trabalhos realizados a partir de diferentes técnicas e materiais, como pintura, escultura, fotografia, tecidos, objetos, etc.

Apesar do título, o subúrbio não é o tema central da exposição. Não é possível, na verdade, definir uma temática que envolva a mostra, devido à diversidade de questões abordadas pelos trabalhos, que não seguem a obrigatoriedade de manter entre si um diálogo iconográfico ou formal. Trata-se de um levantamento de artistas de fora do eixo comumente privilegiado pelas instituições hegemônicas, que se preocupa mais em demonstrar a pluralidade das poéticas do subúrbio do que um retrato desse lugar. Portanto, os trabalhos exibidos fogem de qualquer clichê associado à figura do suburbano.

Os artistas presentes na mostra são, em grande parte, oriundos de coletivos atuantes em seus bairros de origem e em espaços alternativos do subúrbio, que têm se disseminado nos últimos anos como alternativas às grandes instituições e como modo de difundir a produção artística e cultural em áreas onde há carência de espaços voltados a esse fim. Seu deslocamento para o Castelinho do Flamengo (Centro Cultural Municipal Oduvaldo Vianna Filho), localizado em um bairro da Zona Sul, propõe a diluição das fronteiras entre esses diferentes circuitos e garante o trânsito de trabalhos e artistas, que devem circular e ser vistos em diferentes esferas. O subúrbio é seu ponto de partida, mas não deve haver fronteiras para a arte.

Se a arte se globalizou nas últimas décadas, reunindo nas grandes bienais artistas de diferentes nacionalidades e etnias, que provocam discussões, sobretudo, identitárias e micropolíticas, é necessário reconhecer a grande diversidade poética, discursiva e identitária existente na cidade e em suas subdivisões territoriais. Não é possível falar de um Rio de Janeiro ou de um subúrbio. A mostra Suburbanidades é atravessada por essas questões e sustenta a ideia de que o subúrbio, ou os subúrbios, não devem estar à margem da produção de arte contemporânea e que os artistas oriundos dessas localidades podem e devem ocupar qualquer espaço.

* Texto publicado originalmente no catálogo da exposição Suburbanidades, que esteve em cartaz no Castelinho do Flamengo do dia 17/03/2018 ao dia 04/04/2018.

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Artistas:
Amanda Caldas
Antônio Vinícius de Albuquerque
Bárbara Rodrigues
Cleivisson Carvalho
Cynthia Dias
Daiane Oliveira
Erik Maranhão
Flavio Brick
Pedro Rangel
Quin Barbosa
Raquel Gaio
Vitor Canhamaque
Curadoria e produção: Cynthia Dias

Texto: Thiago Fernandes

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