Em 1989, poucos anos após o fim da ditadura militar no Brasil, foi lançado o filme Que Bom Te Ver Viva, de Lúcia Murat, documentário dedicado a mulheres guerrilheiras que foram perseguidas, torturadas e exiladas durante os anos de chumbo. Murat colhe depoimentos dessas testemunhas, que revelam suas experiências, traumas, angústias e detalhes de suas vidas após o fim daqueles terríveis episódios.
Que Bom Te Ver Viva é um filme sobre mulheres guerreiras e sobreviventes, que lutam para manter sua sanidade. O documentário cria uma memória coletiva sobre o período da ditadura a partir dos depoimentos de oito guerrilheiras, ao mesmo tempo em que destaca as suas individualidades e diferentes maneiras de lidar com o trauma. A proximidade dos fatos ao momento de produção do filme faz com que as testemunhas se emocionem com seus próprios depoimentos e cria uma atmosfera de tensão. Uma das mulheres, ainda muito abalada, mantém ao seu lado, durante o depoimento, seu remédio para epilepsia.
Nas falas há o sentimento de perda e de culpa, por terem sobrevivido e os demais companheiros não. Em comum, as mulheres guardam as marcas da violência física e sexual, além do fato de serem designadas criminosas sem justa causa. Carregam o medo de insetos, pesadelos, enjoos, alucinações, porém todas possuem a mesma vontade de não deixar esses fatos caírem no esquecimento.
A proximidade dos acontecimentos revela o caráter de urgência do filme para a diretora, que constrói uma história do tempo presente ao colher testemunhos de um período que até hoje é obscuro em nossa história. Realizar um filme que rememora fatos tão recentes é uma atitude de coragem da diretora e evidencia sua vontade de não deixar aquelas memórias, cedo ou tarde, serem esquecidas.

Murat também foi presa e torturada durante a ditadura militar e, apesar de não aparecer diretamente no filme, sua subjetividade se manifesta na escolha da temática e no modo como conduz os depoimentos. O enquadramento, semelhante a um retrato 3×4, cria uma relação de proximidade e empatia entre a testemunha, a diretora e o espectador. Um filme sobre mulheres torturadas durante o período da ditadura é também um filme sobre Lúcia Murat e sobre tantas outras que passaram por essa experiência, mas não tiveram seus rostos e suas vozes expostas. É também uma obra sobre mulheres em geral, que diariamente passam por diferentes tipos de torturas produzidas por uma sociedade machista e patriarcal.
O filme rompe com o padrão tradicional de documentário ao inserir um monólogo ficcional interpretado por Irene Ravache. Este recurso cria um contraste com os depoimentos das demais mulheres por possuir um enquadramento diferente e pela postura da atriz, que não demonstra qualquer sinal de fragilidade. O tom de sua fala é irônico e, certas vezes, cômico. A personagem de Ravache coloca-se como uma mulher forte e segura e tem a função de posicionar-se criticamente, além de expor a dura realidade dos anos de chumbo, uma vez que as entrevistadas estão demasiadamente emocionadas.

Também são entrevistados os maridos e amigas das mulheres, que apresentam a percepção de quem não passou pelas mesmas experiências mas convive com as testemunhas. O enquadramento, assim como nas cenas da personagem de Irene Ravache, cria um certo distanciamento e destaca visualmente os depoimentos das mulheres torturadas dos depoimentos de personagens externos.
Se as memórias dos anos de chumbo sofrem inúmeras tentativas de serem apagadas, a mulher, que sempre foi marginalizada pela historiografia, tem seu papel ainda mais reduzido nas narrativas sobre esse período. Este fato reforça a necessidade do trabalho de Murat. Considerando também que nossa indústria cinematográfica é majoritariamente masculina, principalmente no que diz respeito à função de diretor, o fato de uma mulher dirigir um documentário sobre mulheres guerrilheiras potencializa o caráter político do filme, sobretudo naquele período.
Murat mescla os depoimentos com recortes de jornais do período, que revelam como a mídia lidou com aqueles acontecimentos. Também estão presentes imagens das mulheres como mães, esposas e trabalhadoras, revelando o seu cotidiano após o período da ditadura e como lidam com seus traumas no dia a dia. Essas imagens são filmadas à luz natural, enquanto as cenas de Irene Ravache assumem uma dimensão teatral, devido a sua frontalidade e pela performance da atriz.
A ditadura militar é um tema recorrente na filmografia de Murat. Em 2011, a diretora revisitou este tema em Uma Longa Viagem, filme que carrega uma subjetividade mais evidente ao inserir seus relatos em primeira pessoa e por focar a narrativa em sua vida pessoal, mais especificamente nas cartas trocadas entre Murat, seus irmãos e sua mãe durante a ditadura.
Vinte e dois anos após Que Bom te Ver Viva, Uma Longa Viagem traz uma atmosfera menos tensa, não só pela distância em relação aos fatos relatados, mas pela comicidade presente na fala de Heitor, seu irmão que é entrevistado, a quem se dedica a maior parte do filme. Mais uma vez, Murat quebra as barreiras entre documentário e ficção ao convidar o ator Caio Blat para interpretar Heitor em sua juventude, mesclando depoimentos de seu irmão com a dramatização de suas cartas pelo ator.
Durante as falas de Caio Blat, são projetadas ao fundo imagens que remetem aos locais que são citados, utilizando um antigo recurso do cinema, o back projection. O ator não apenas lê as cartas como se as estivesse escrevendo naquele momento, mas também as encena, em uma performance que beira o onírico. Mais uma vez a teatralidade está presente nessas cenas que assumem ao mesmo tempo a dimensão de performance, videoarte e documentário.

A tensão dos relatos de Murat sobre seu período como presa-política contrasta com a experiência boêmia de Heitor, que foi enviado pelos seus pais para Londres para que não seguisse os mesmos passos da irmã, que entrou para a luta armada e acabou presa. De Londres, Heitor partiu para outros países e experimentou a psicodelia das drogas, a liberdade e a falta de compromissos. Heitor revela suas insanidades sem qualquer pudor e em muitos momentos consegue utilizar o humor para falar de um período tão conturbado. Já Miguel, o terceiro irmão, aparece mais discretamente em seus depoimentos e não viveu para assistir ao documentário.
Diferente de Que Bom Te Ver Viva, Uma Longa Viagem apresenta a ditadura como uma lembrança distante, cujas marcas ainda estão presentes, mas em um processo mais avançado de superação. Seu ponto de partida, na verdade, é a morte de Miguel, uma experiência dolorosa que faz a diretora querer recordar esse passado. Uma Longa Viagem não tem o objetivo de criar uma memória coletiva, mas de ser assumidamente uma memória pessoal que retrata uma época, enquanto no filme de 1989 a subjetividade da diretora está nas entrelinhas. O filme apresenta dois lados de uma história: o ponto de vista de uma mulher que permaneceu no Brasil, onde foi presa e torturada, e de um homem que teve a liberdade de explorar o mundo, enquanto assimilava de longe esses fatos através de correspondências trocadas com a família.
Ambos os filmes combatem o esquecimento. Criam, a partir de depoimentos de testemunhas, fragmentos de uma longa história que durou mais de duas décadas. Em tempos como hoje, de crise na democracia brasileira e de proliferação de saudosistas da ditadura militar, sua importância deve ser evidenciada.
