Dos meus comunistas cuido eu

Ao entrar na Baró Galeria, em São Paulo, o público se depara com uma faixa horizontal pintada nas paredes, percorrendo todo o espaço expositivo, numa escala de cores que vai do verde bandeira ao preto petróleo, apontando para o domínio gradual da obscuridade no contexto político nacional, que é ponto central de discussão da exposição de Lourival Cuquinha. Golpe Profundo dá o tom da mostra e confunde-se com a arquitetura da galeria, assim como outros trabalhos do artista que são realizados diretamente sobre a parede. A exposição também inclui textos, objetos, um vídeo e seus conhecidos trabalhos realizados a partir da apropriação de moedas e notas de diversos valores e origens.

Embora a obscuridade gradual de Golpe Profundo possa remeter a uma narrativa linear, não há nada de linear na exposição de Cuquinha. Há, na verdade, uma profusão de temporalidades que se entrelaçam. Os trabalhos tomam como referência diferentes momentos históricos, como a chegada dos colonizadores ao Brasil, a Ditadura Militar e a prisão do ex-presidente Lula, e são levantadas relações anacrônicas entre os mesmos.

Em Apólice do Apocalipse, Cuquinha expõe uma transcrição da carta de Pero Vaz de Caminha, escrita pelo próprio artista, em uma vitrine junto a grilos vivos. Substâncias expelidas pelos insetos dão aparência antiga a documentos e latifundiários utilizam esse processo, chamado de grilagem, em documentos de terras apropriadas ilegalmente, com objetivo de legitimar sua posse. Cuquinha supõe que o “descobrimento” seria o primeiro processo de grilagem do país e a carta de Caminha seria seu documento legitimador. A partir de então, se inicia uma história de dominação e exploração, o que nos leva novamente ao trabalho Golpe Profundo, que envolve e conecta toda a exposição. Não seria a história do Brasil uma história de consecutivos golpes?

Também é do contexto de um golpe que se origina o título da exposição: Dos meus comunistas cuido eu, que é uma apropriação da frase citada por Roberto Marinho em 1964, logo após o golpe militar, quando lhe foi solicitada uma lista de seus empregados que tivessem ligação com a esquerda e o comunismo. Numa das paredes da galeria, passando quase despercebido devido a seu pequeno formato e à incorporação ao espaço expositivo, o artista insere uma reprodução da efígie das notas de real justaposta às datas do golpe militar de 1964 e da prisão do ex-presidente Lula, que por sua vez são sobrepostas formando um “x”.

A aproximação entre os dois momentos históricos em questão, reforçada pelo artista, tem sido recorrente em discussões políticas desde o impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2016, quando se instaurou um novo cenário de golpe no país. No início de 2018, houve uma tentativa de censura a uma disciplina ministrada por um professor da Universidade de Brasília (UnB) cujo tema era “o golpe de 2016”. Após a reação negativa do Ministro da Educação, professores de diversas universidades do Brasil, como provocação, se propuseram a oferecer cursos com a mesma temática. Pensar historicamente o tempo presente é sempre um desafio, e o anacronismo presente nas leituras sobre o golpe em vigor, onde se inclui a exposição em questão, pode iluminar a natureza da crise atual.

Lourival Cuquinha lança suas provocações e apresenta de forma poética os cruzamentos entre diferentes marcos históricos, apontando para estruturas desses passados que sobrevivem na política contemporânea.

 

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Fotos: Baró Galeria
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