Revisitando a Nova Figuração dos anos 1960: Dias, Barros e Gerchman

Após uma década de efervescência do abstracionismo geométrico na arte brasileira – tendência que se alinhava ao índice de modernização e industrialização do país na década de 1950 -, a figuração volta a ganhar força na década de 1960 como resposta a acontecimentos políticos, contudo, sem adotar o tom naturalista de outrora. A chamada Nova Figuração é marcada pela inclusão de objetos do mundo real e pela relação com a imagem midiática, tomando como referência a Pop Art norte-americana e o Nouveau Réalisme francês. Três dos grandes nomes que marcaram esse período da arte brasileira compõem a mostra Entre construção e apropriação – Antonio Dias, Geraldo de Barros e Rubens Gerchman, realizada no Sesc Pinheiros, em São Paulo, com curadoria de João Bandeira.

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Rubens Gerchman, Lindonéia, a Gioconda dos Subúrbios, 1966

Se nos Estados Unidos o ícone da Pop Art é a imagem da estrela de cinema Marilyn Monroe, aqui o rosto da Nova Figuração é uma jovem suburbana morta, Lindonéia, a Gioconda dos Subúrbios (1966) de Rubens Gerchman, presente na mostra. Se colocarmos lado a lado artistas como Andy Warhol e Gerchman, notaremos as diferenças entre o movimento americano e o brasileiro. Enquanto no primeiro há uma celebração do banal e uma crítica à sociedade de consumo, no segundo há um forte tom político e a apropriação da estética da Pop americana para abordar o contexto nacional no momento da Ditadura Militar.

Lindonéia celebra a cultura do subúrbio, as massas, o popular, o kitsch. O enquadramento, como de uma foto 3×4, não deixa claro se aquela é a imagem de uma notícia no jornal ou de uma lápide. Sua morte sem indícios é ainda um maior enigma. Assassinato? Acidente? Suicídio? As marcas em seu rosto seriam de violência doméstica?

Gerchman utiliza a linguagem pop de modo singular, com formas que se aproximam mais do cordel brasileiro do que dos quadrinhos americanos, além de motivos florais como de um rococó abrasileirado. Por fim, apropria-se de forma irônica da obra de Leonardo da Vinci para nomear seu próprio trabalho, forçando imediatamente o espectador a buscar semelhanças e divergências entre as duas obras.

O contexto brasileiro está distante do glamour hollywoodiano. Nem estrelas do cinema e tampouco produtos industriais, o ícone da arte “pop” brasileira é a jovem morta do subúrbio, o que demonstra que a Pop Art no Brasil não tem nada de pop. Tal constatação é reforçada ao observar o conjunto de obras que formam a exposição, sobretudo as de Antonio Dias.

É possível identificar semelhanças entre Lindonéia e a série Os desaparecidos, de Gerchman, também presente na mostra, que é bastante representativa de uma questão recorrente na Ditadura Militar. Outros temas atravessam as obras do artista que compõem a exposição, como o futebol e concursos de beleza, que apresentam uma relação mais forte com a Pop Art em seu conteúdo. Gerchman incorpora diferentes tendências, ora está dialogando mais diretamente com a Pop Art, ora com o expressionismo, como na pintura Ônibus (1965).

A primeira reunião oficial dos artistas da Nova Figuração ocorreu na exposição-manifesto Opinião 65, realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, que reagia ao golpe militar ocorrido no ano anterior, portanto, o movimento em questão nasce diante da necessidade de crítica social e política. Dos artistas em exposição no Sesc Pinheiros, o único que não participou da mostra de 1965 foi Geraldo de Barros. O artista integrou a versão paulista da exposição, Propostas 65, que ocorreu no mesmo ano e se diferencia da carioca por incluir obras do Concretismo e peças publicitárias, colocando abstração e figuração como questões não antagônicas.

Geraldo de Barros integrou o grupo Ruptura na década de 1950, sendo um dos expoentes da arte concreta brasileira, além de ser um pioneiro da fotografia geométrico-abstrata no Brasil. A aproximação do artista com tendências da Nova Figuração na década de 1960 representa a dissolução dos conflitos entre figuração e abstração que marcaram a década anterior. A maior parte de suas obras expostas no Sesc Pinheiros, pertencentes a uma fase pouco vista do artista, apresentam cenas que parecem ter sido inspiradas por histórias em quadrinhos ou fotonovelas, onde se observa cenas românticas entre um homem e uma mulher, embora um tanto sombrias. O artista faz uso da pintura e colagem para criar composições que se assemelham a imagens impressas em jornais e anúncios publicitários, aproximando-se da estética adotada por Gerchman em muitas de suas obras, como a série Desaparecidos (1967) e As professorinhas (1967), presentes na exposição. Barros também apresenta a pintura Futebol, de 1964, que se assemelha às obras de Gerchman com a mesma temática, também realizadas nesse período.

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Geraldo de Barros, They are kissing, 1964

As obras de Antonio Dias incorporam com maior frequência objetos reais e extrapolam a bidimensionalidade do quadro, adquirindo caráter escultórico. Vencedor? (1965), também exposta na mostra Opinião 65, incorpora um cabideiro e um capacete militar e é bastante representativa desse movimento. Assim como outros trabalhos de Dias, este apresenta um claro diálogo com o contexto político brasileiro daquele momento. Suas obras adotam um tom violento que o destaca dos demais artistas da mostra, mas não deixa de dialogar com artistas da Pop Art, como Roy Liechtenstein, Andy Warhol e Claes Oldenburg. Explosões, caveiras, pedaços do corpo humano e sangue são alguns dos elementos iconográficos que compõem suas obras. Num misto de ironia, horror e erotismo, Dias se apropria da estética Pop para apresentar o lado mais sombrio da década de 1960 no Brasil, apelando ao grotesco.

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Antonio Dias, Vencedor? 1965

Entre construção e apropriação assume o desafio de revisitar a arte da década de 1960 limitando-se ao trabalho de apenas três artistas, entre tantos outros que marcaram a época. A curadoria acerta ao explorar o que há de singular em cada artista e apresentar obras pouco vistas, que demonstram que a Nova Figuração não foi um movimento dogmático, mas um misto de diversas tendências, um movimento de caráter híbrido que representou a abertura de portas para a arte contemporânea no Brasil.

 

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