A artista carioca Martha Niklaus apresenta na exposição Histórias de peixes, iscas e anzóis, realizada no Paço Imperial (Rio de Janeiro), um conjunto heterogêneo de trabalhos realizados entre 1993 e 2018, que são atravessados por aspectos da arte conceitual, minimalista e experimental. A curadoria, assinada por Paula Terra-Neale, privilegia trabalhos que nascem a partir do encontro com o outro e em muitos casos adquirem caráter coletivo, tanto em seu processo criativo como em sua exibição, uma vez que a artista lida com a desmaterialização e efemeridade da arte e, portanto, o que ocupa lugar de primazia na mostra nem sempre são objetos, mas registros realizados pela artista, por amigos e pela imprensa.
Chama atenção, em particular, duas vitrines que exibem recortes de jornais, cujo assunto em pauta são intervenções urbanas realizadas pela artista: Choque de Cores (2011) e Horizonte Negro (2015). A primeira é executada na Praia de Ipanema, após o “choque de ordem” que obrigou comerciantes que alugam guarda-sóis a trabalhar apenas com a cor vermelha, instituída por uma marca de cerveja, a qual foi concedido o espaço da praia para merchandising. Um dos principais espaços de lazer do carioca foi uniformizado, fazendo-lhe abdicar de uma de suas características mais marcantes: o multicolorido, que reflete a diversidade existente na cidade e, sobretudo, naquele lugar específico, onde encontram-se pessoas que vivem nas redondezas, moradores do subúrbio e baixada fluminense, e ainda turistas de outras cidades, estados e países. Em resposta à ação da prefeitura, a artista cobriu os guarda-sóis com tecidos coloridos, em um domingo de sol e grande movimento, contando com a ajuda de assistentes e banhistas. A partir desse encontro com o outro, a Niklaus transforma a praia em espaço de exercício criativo e de coletividade, induzindo a resistência e tomada e posição por parte da população diante do domínio da iniciativa privada em um importante espaço público.
Os recortes de jornais presentes na exposição criam uma cronologia. São dispostas matérias que anunciam a decisão da prefeitura, contextualizando a ação da artista, justapostas a páginas que apresentam a intervenção de Martha Niklaus, lançando mão de imagens e depoimentos. Por fim, a artista disponibiliza matérias que mostram o desenrolar da história, quando em 2012 e 2015 os guarda-sóis receberam novas padronagens. Com esse material, somado a registros fotográficos, a artista desloca um trabalho site-specific para a galeria, através do que Robert Smithson chama de non-site. Para o artista da land art, que muitas vezes realizou trabalhos em paisagens remotas, o non-site é um termo utilizado para refletir sobre registros de seus trabalhos, que são expostos em espaços institucionais e funcionam como extensões, enquanto o site é o local onde a obra foi primeiramente instalada. No caso de Niklaus, o non-site encontra seu lugar não apenas na exposição, através dos registros aqui citados, mas também na própria circulação que o jornal teve em sua época. A mídia de massa, através das técnicas de reprodução e seu poder de circulação, subverte a efemeridade e imobilidade da intervenção, multiplicando sua imagem em grande tiragem e garantindo-lhe o que Walter Benjamin chama de valor de exposição.
A mesma tática é incorporada em Horizonte Negro, ação em que a artista insere na Baía de Guanabara 26 embarcações com grandes bandeiras pretas em seus mastros, como reação ao projeto de construção de um shopping na Marina da Glória. Mais uma vez, a artista opera a partir da coletividade, propondo um ato em solidariedade aos velejadores, prejudicados com o processo de privatização do que seria a única marina pública da cidade, e convida os mesmos a participarem da ação. Vemos, então, a artista como propositora e os velejadores como motores da ação artística. O horizonte de luto idealizado por Niklaus também se apropria dos jornais como tática de sobrevida. Assim como em Choque de Cores, notícias são dispostas em uma vitrine, apresentando a ação artística e os desdobramentos do caso em questão, que teve fim com a desautorização das obras pela Justiça Federal.
É importante destacar dois aspectos dos trabalhos de Martha Niklaus. Primeiramente, o uso da intervenção urbana para chamar atenção a casos polêmicos de domínio da iniciativa privada em espaços públicos da cidade. A artista encara o espaço público como o lugar do encontro, da coletividade e do dissenso, onde tensões e conflitos da própria cidade podem ser explicitadas através de experiências sensíveis. A rua é explorada pela sua possibilidade de colocar a arte em embate direto com o transeunte, através de proposições críticas que operam transformações na paisagem. Contudo, isto não é o suficiente, e aí entra o segundo aspecto a ser destacado nas intervenções em questão, que é a apropriação da mídia de massa como amplificadora do dissenso estabelecido pelos trabalhos artísticos. As intervenções de Niklaus circulam nos jornais, chegando ao público que não as presenciou fisicamente. A mídia de massa estende a duração dos trabalhos efêmeros e é explorada como espaço performático, colocando em cheque os limites entre obra e documentação.
Desde as primeiras experiências artísticas em espaços públicos no Brasil, esse tipo de tática de apropriação de espaços em jornais é explorado. É possível citar, por exemplo, as experiências de Flávio de Carvalho, as Trouxas Ensanguentadas de Artur Barrio e trabalhos do grupo paulista 3Nós3, que no final da década de 1970, quando o Brasil ainda estava sob a Ditadura Militar, cobriu a cabeça de estátuas em praças públicas com sacos de lixo – como se fazia em torturas por asfixia – e em seguida ligou para jornais, fazendo-se passar por cidadãos horrorizados com tal ato de vandalismo. Desta maneira, os integrantes do coletivo, então estudantes universitários, sem condições financeiras de registrarem, reproduzirem e fazerem circular suas ações, viram seu trabalho circular em páginas de jornais, com grande tiragem, sem qualquer custo. No Rio de Janeiro, um caso emblemático é o Cristo Vermelho, do artista Ducha, que no ano 2000, em reação à onda de violência na cidade, burlou a segurança do Cristo Redentor e inseriu folhas de gelatina vermelhas em seus holofotes, colorindo o monumento através da iluminação. Embora a intervenção tenha durado apenas alguns minutos, o artista ligou para a redação de um jornal informando a atípica mudança de cor do monumento, fazendo com que no dia seguinte sua imagem estampasse a capa do veículo de comunicação. Observa-se, em ambos os casos, uma atitude performática quando os artistas entram em contato com a mídia hegemônica e organizam táticas para se apropriarem desse espaço.
Tais intervenções, assim como as de Martha Niklaus, utilizam o espaço público para questionar tensões e conflitos na cidade e, em um segundo momento, utilizam a imprensa para estender sua duração, garantir sua circulação e amplificar seus discursos. Na exposição de Niklaus, matérias de jornais têm espaço privilegiado, adquirindo status de objeto artístico. Mais do que meras documentações, são imbuídos de performatividade, funcionando como extensões de um trabalho que começa no espaço público e ganha novo formato ao se inserir criticamente em um espaço hegemônico de circulação da informação. Portanto, o trabalho não está somente no espaço público, tampouco está apenas na galeria ou na imprensa. É explorado seu caráter impermanente e transitório, que lhe garante existência em diferentes esferas, onde opera e afeta o público de maneiras diversas.
Olá Thiago, agradeço sua atenção para a minha exposição. Gostei da forma que escreve sobre as intervenções Choque de Cores e Horizonte Negro focando na relação que o trabalho tem com a mídia de massa ampliando sua ação para além do limite do evento em si. Boas relações com Barrio e Ducha e o site-specific e non-site de Robert Smithson. Abraços
CurtirCurtir