Humor diante do horror: narrativas anacrônicas de Carlos Contente

Masteripiece
Roy Lichtenstein, Masterpiece, 1962

Histórias em quadrinhos são objetos de interesse de artistas visuais desde a década de 1960, a exemplo da Pop Art – movimento que coincide com a consolidação da cultura de massa e da indústria cultural nos Estados Unidos e Inglaterra. Intensifica-se, desde então, o interesse da arte por objetos de consumo, técnicas de reprodução de imagem e pela mídia de massa, o que vai de encontro com os quadrinhos, cujo status e processo construtivo se inclui nessas categorias. Um dos grandes exemplos é o artista norte-americano Roy Lichtenstein, que pintou em suas telas cenas inspiradas em histórias em quadrinhos, onde são incluídos balões de falas, onomatopeias e são reproduzidos os pontos que fazem parte do processo de impressão das páginas. No Brasil, a estética dos quadrinhos é adotada em meados da década de 1960 por artistas como Antonio Dias, Claudio Tozzi, Maurício Nogueira Lima e Rubens Gerchman. Contudo, esses desdobramentos da Pop no Brasil, aqui chamada Nova Figuração, ao invés da irônica celebração do banal e dos objetos de consumo, adota um tom político e contestatório, como forma de crítica social no momento da ditadura militar.

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Claudio Tozzi, Guevara vivo ou morto, 1967

Os quadrinhos de Carlos Contente se aproximam mais da vontade poética e engajamento político dos brasileiros da Nova Figuração do que dos artistas Pop Art. Mas ao contrário de todos eles, seu interesse pela linguagem dos quadrinhos surge antes do interesse pela arte contemporânea. Foi por meio de um curso de quadrinhos que realizou no final da década de 1990 no Méier, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro onde reside até hoje, que Contente foi incentivado a se matricular no curso de Pintura da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Na EBA-UFRJ, além do conhecimento técnico adquirido, o artista entrou em contato com movimentos como o Expressionismo, que influencia seus traços rápidos, a adoção da estética do grotesco, a inquietação, além de seu tom agressivo e político. O curso também lhe apresentou ao Minimalismo, cujo conceito de campo ampliado é explorado em muitos de seus trabalhos, como os que realiza em espaços públicos por meio do stencil, bem como obras apresentadas em espaços expositivos, fazendo com que linhas e formas se expandam para fora do quadro (que em seu caso raramente é de fato um quadro, em termos tradicionais) e invadam a superfície da parede.

Embora tenha realizado um curso tradicional na mais antiga escola de artes do Brasil e tenha ingressado rapidamente em espaços legitimados do circuito de arte contemporânea, Contente jamais abandonou os quadrinhos e, dessa maneira, quebra hierarquias entre diferentes manifestações artísticas. Seus trabalhos frequentemente desenvolvem narrativas e adotam a palavra escrita como importante elemento. O artista é conhecido por criar personagens, muito deles tendo como base um autorretrato que desenvolve desde 2002 e incorpora diversas figuras, como os Operários de Tarsila do Amaral e o entrevistador de um talkshow. Tendo o humor como uma de suas características mais marcantes – fazendo jus a seu sobrenome – os personagens de Contente comumente ironizam figuras políticas e agentes do sistema da arte.

A exposição Estética da Comicidade, que esteve em cartaz na Galeria de Artes da Universidade Federal Fluminense com curadoria de Jacqueline Melo, apresenta os três volumes da saga Claudinho e Adolfo, série de quadrinhos desenvolvida por Contente entre 2013 e 2016. Os quadrinhos, cujas matrizes originais são dispostas nas paredes da galeria, contam a história do europeu Adolf Himmler, um assumido neonazista que viaja ao Brasil para fazer um “turismo de atrocidades”, tendo como guia um autêntico trabalhador carioca, humilde e batalhador, chamado Claudinho, que se mantem descontraído mesmo nas situações limite. Adolfo, cujo nome, conduta e aparência trazem à memória uma conhecida figura política, busca em seu passeio tragédias, cenas de violência e exemplos do que poderia ser considerado fascismo em terras brasileiras no século XXI.

Com bom humor, a narrativa criada por Contente chama atenção para aspectos desumanos e autoritários no cotidiano brasileiro. Adolfo incorpora a típica figura do estrangeiro que chega ao Brasil em busca do “exótico”, mas ao invés de belezas naturais e pontos turísticos, segue um roteiro que, embora atípico, o leva a testemunhar a realidade vivida pela maior parte dos brasileiros. O fascínio do estrangeiro pela violência, ao mesmo tempo que absurdo, diz muito sobre nossa maneira de lidar com a mesma, transformando-a em produto consumido em forma de imagem por meio de telejornais sensacionalistas e outros dispositivos. Adolfo, sempre na posição do “outro”, encara a brutalidade como entretenimento, enquanto figura de Claudinho evoca a naturalidade com a qual o brasileiro lida com tais atrocidades, já enraizadas em seu cotidiano.

O trabalho de Contente chama atenção para a sobrevivência de aspectos autoritários através do tempo. Num exercício de anacronismo, o personagem Adolfo Himmler encontra no contexto brasileiro situações condizentes com a Alemanha da primeira metade dos anos 1940.

Coincidentemente, a exposição Estética da Comicidade abriu dois dias antes da manifestação “Ele Não”, realizada em repúdio ao então candidato à presidência Jair Bolsonaro, e encerrou na data do segundo turno das eleições, que teve o mesmo como vitorioso. O Brasil elegeu como presidente uma figura autoritária, conhecida por declarações machistas, homofóbicas, racistas e por defender torturadores, a ditadura militar e o porte de armas.

Segundo o filósofo e historiador da arte francês Georges Didi-Huberman, a imagem é uma sedimentação de diversos tempos e seu sentido nunca cessa de se reconfigurar. Portanto, nesse contexto, a obra de Contente se atualiza, evoca novos personagens e nos provoca a observar em situações cotidianas lampejos de um passado que se imagina distante e enterrado.

Mas em meio a tantas atrocidades, não se pode deixar de considerar o elemento do humor, que é adotado pelo artista como meio de ridicularizar os opressores. Em sua narrativa anárquica e insana, Contente utiliza o riso como instrumento político e coloca o objeto do ridículo em posição moralmente inferior àquele que ri. Em tempos tenebrosos, o humor e a liberdade de expressão aliam-se à vontade poética do artista e a seu olhar crítico sobre a sociedade e os sistemas de poder.

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