No ano em que tivemos que nos recolher em nossas casas em função de uma pandemia, o Museu de Arte do Rio inaugurou a exposição Casa Carioca, sobre a habitação no Rio de Janeiro e suas complexidades, com curadoria de Marcelo Campos e Joice Berth. A mostra já vinha sendo planejada antes da crise de saúde global e aconteceria paralelamente ao 27° Congresso Mundial de Arquitetos sediado na cidade, declarada capital mundial da arquitetura em 2020. O congresso foi adiado para 2021, mas a exposição do MAR foi concretizada, driblando os desafios impostos pela pandemia e incorporando as urgências deste momento entre as temáticas abordadas.


O primeiro ponto a se destacar em Casa Carioca é a busca pelas histórias não-oficiais e saberes contra-hegemônicos, como já é de costume nas exposições do MAR. A mostra gira em torno dos dados extraídos de uma pesquisa realizada pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo acerca da autoconstrução no Brasil. Segundo o levantamento do CAU, cerca de 85% das moradias brasileiras são autoconstruídas, ou seja, são desenvolvidas pelos próprios moradores, sem o auxílio de arquitetos ou engenheiros. Aquilo que está nos livros de arquitetura e de história da arte, residências que podem ser encaixadas em um estilo ou numa tendência hegemônica, obras que associamos a cânones como Oscar Niemeyer, Lucio Costa e Lina Bo Bardi, na verdade só correspondem a 15% da nossa realidade. O que é, então, a casa carioca? Ou melhor: quem constrói a casa carioca? Marcelo Campos e Joice Berth levantam uma constelação de respostas a essas perguntas, sem se prender a cronologias ou recorrer forçosamente a categorizações consolidadas no vocabulário da arquitetura.
O principal discurso produzido por Casa Carioca é de afirmação das construções informais como arquiteturas legítimas e de reconhecimento dos saberes construtivos herdados dos povos originários e escravizados, de aldeias e de quilombos. Devo pontuar que a curadoria tem o cuidado de não induzir a uma romantização da precariedade, mas conferir visibilidade às diferentes ideias de casa, sobretudo àquelas que mais se aproximam do cotidiano da maioria dos cariocas. Isto é feito ao mesmo tempo em que a exposição coloca em pauta a reivindicação pelo direito à moradia digna.

Antes de tecer comentários sobre a seleção de artistas que compõem a exposição, devo destacar o projeto feito pelo diretor de arte Valdy Lopes para a expografia de Casa Carioca. O trabalho expográfico produz um ambiente imersivo, onde as paredes, por si só, contam histórias. Os discursos enunciados pelas obras da exposição ecoam de uma maneira que não seria possível se inseridos na estrutura neutralizadora de um “cubo branco”, mais recorrente em ambientes expositivos.
A autoconstrução é o tema atravessado por grande parte dos trabalhos artísticos apresentados, com destaque para o amplo número de artistas jovens e de origem periférica que sustentam essa discussão com base em suas vivências e lugares de fala. Tijolos, cimento, pás, baldes, arames e vergalhões são alguns dos materiais que mais aparecem nos trabalhos selecionados ou comissionados para Casa Carioca, como nas obras de Mulambö e Ana Clara Tito, onde se faz clara a referência à construção civil. É também na relação entre casa e trabalho que se insere o Salão Parayzo, instalação de Lyz Parayzo que lembra as tantas garagens, quintais e cômodos da casa que se transformam em salões de beleza ou em outros estabelecimentos comerciais. Para esta geração mais recente, os meios mais tradicionais, como pintura e desenho, costumam aparecer na condição de produção de narrativas visuais protagonizadas pela classe trabalhadora, tendo como cenário as favelas e subúrbios, como nas telas de Wallace Pato, nos híbridos entre fotografia e ilustração produzidos por PV Dias e nos quadrinhos de Leandro Assis e Triscila Oliveira.


Ao lado desses jovens nomes, figuram artistas de diferentes gerações: representantes do final do século XIX e início do século XX, interessados em retratar o cotidiano do Rio de Janeiro e de suas moradias, influenciados pelo realismo, impressionismo, e outras tendências europeias, como Eliseu Visconti e Gustavo Dall’Ara; aclamados nomes da gravura moderna e de preocupação social, como Oswaldo Goeldi e Renina Katz; pintores-cronistas dos costumes populares, como Heitor dos Prazeres, Djanira, Maria Auxiliadora e Manezinho Araújo; diferentes gerações da videoarte, de Leticia Parente a Sara Ramo, estas concentradas na figura da mulher em ambiente íntimo e doméstico; a vontade construtiva de Lygia Pape, Lygia Clark e Hélio Oiticica; notáveis artistas que emergiram no final do século XX, como Adriana Varejão, Márcia X, Rosana Paulino e Luiz Zerbini, além de artistas que se destacaram a partir dos anos 2000, como Lucia Laguna, Joana Traub Csëko e Daniel Murgel. Não é possível deixar de mencionar a série documental realizada pela produtora de audiovisual Três Marias, com emocionantes depoimentos de habitantes do Rio de Janeiro sobre suas histórias envolvendo o lar, assim como os vídeos montados por Joana Collier com cenas do cinema brasileiro que dialogam com os núcleos da exposição. Esse feliz encontro de gerações, sem hierarquizações ou divisões cronológicas, soma aproximadamente 600 peças, entre obras de arte e documentações.

O que sobressai em Casa Carioca, mais do que a arquitetura e a exterioridade da casa, é a dimensão subjetiva do habitar: relações entre vida e trabalho, religiosidades e quilombismo no âmbito doméstico, celebrações, multirões, subversões e contrausos dos espaços. Neste ponto, é importante ressaltar a contribuição fundamental de Joice Berth, arquiteta, urbanista e escritora, que na curadoria em parceria com Marcelo Campos afirma a necessidade de racializar as discussões sobre o habitar, incorporando na exposição pautas do feminismo negro. Para contar a história da casa carioca é preciso falar sobre as babás e domésticas negras, que deixam seus filhos para cuidar de crianças brancas; é necessário mencionar que mulheres brancas lutaram por sua emancipação, pelo direito de sair de casa e trabalhar, enquanto para as mulheres negras essa sempre foi uma realidade, uma necessidade, quando não uma obrigação; não se pode deixar de lembrar das relações de subalternidade no trabalho doméstico e das heranças da escravidão ainda impregnadas em nosso cotidiano, em nossos modos de habitar.


O tom político da exposição também é acentuado pelas discussões sobre remoções e ocupações. A paisagem do Rio de Janeiro tem como um dos principais fatores de transformação as demolições e expulsões feitas em nome de uma suposta ideia de progresso e de embelezamento: do cortiço Cabeça de Porco, ainda no século XIX, passando pelas controversas formas do prefeito Pereira Passos no início do século XX, seguida da trágica demolição do Morro do Castelo, não esquecendo o desmonte de favelas como o Esqueleto e a Praia do Pinto, até casos mais recentes, a exemplo da remoção da Vila Autódromo no contexto das obras para os Jogos Olímpicos de 2016. Como consequência dessas interferências urbanas, ocorre a mudança de pessoas pobres para áreas cada vez mais distantes do centro da cidade e de seus cartões postais, para bairros geralmente carentes de infraestrutura e de opções de lazer. Além de vasta documentação (que abrange recortes de jornais, revistas e fotografias históricas), há trabalhos artísticos que tratam das paisagens removidas, dos deslocamentos, do direito à cidade e à moradia, onde destacam-se artistas que abordam as questões indígenas, como Xadalu, Denilson Baniwa e Sallisa Rosa. Neste ponto lembramos que nosso histórico de desapropriações violentas de territórios antecede em muito os problemas urbanos da modernidade, remontando ao início da colonização do país. A série de fotografias de Elisa Mendes, realizada na Aldeia Maracanã, não nos deixa esquecer a violência a qual ainda hoje são submetidos povos que há séculos lutam pelo direito de ocupar a terra que lhes pertence.

Projetos de impacto social também têm presença marcante na exposição. Um exemplo é a instalação com áudio e texto que apresenta o projeto Concreto Rosa, responsável por oferecer mão de obra feminina qualificada e acessível para reparos, reformas e construções, interferindo em um mercado predominantemente masculino. Já Maurício Hora foi convidado a expor uma série de fotografias sobre o projeto que implementou no Morro da Providência durante a pandemia de COVID-19: a distribuição de bicas públicas de água potável e sabão reciclado, instaladas em áreas estratégicas do morro e adjacências, como forma de incentivar a população a lavar as mãos. Embora o acesso à água seja um direito básico, moradores do Morro da Providência e de outras localidades da cidade sofrem com a deficiência de abastecimento. Esta também é uma das motivações do projeto BICA, realizado pelo g.rua (Grupo de Arquitetos) especialmente para a exposição Casa Carioca. Trata-se de três bicas com água potável disponibilizada para consumo público, instaladas na calçada em frente ao MAR.


Além da autoconstrução e das táticas criativas adotadas diante das dificuldades que envolvem o habitar no Rio de Janeiro, os 15% que correspondem às moradias desenvolvidas por arquitetos e engenheiros também têm seu lugar na exposição. Elas são revistas com menores momentos de celebração, sendo méritos e contribuições coerentemente reconhecidos, mas havendo maior espaço para críticas. Entre elas, estão as contradições do modernismo e do chamado “estilo internacional”, que demostraram limitações em sua utopia por construções racionais e baratas, além de não atenderem aos desejos subjetivos de moradores de baixa renda. Essas questões se evidenciam nos puxadinhos, gambiarras e adaptações realizadas em conjuntos habitacionais modernos construídos em meados do século XX, muitos dos quais correspondiam ao desejo de erradicação das favelas. Pessoas removidas de lugares onde não havia qualquer controle espacial e de moradias autoconstruídas, transferidas para espaços deliberadamente desenhados e controlados, apostaram nos contrausos para chamar um lugar de “seu”.
Vemos que mesmo ao trazer o modernismo e as construções formais para o centro da discussão, Casa Carioca nos conduz novamente ao tema da autoconstrução. Dessa maneira, a exposição reforça a relação entre o habitar e o construir. O habitar não como simplesmente dormir ou se alojar em um lugar, mas como forma de apropriação e contaminação de um espaço pela subjetividade de quem o ocupa. Ocupação e apropriação não no sentido de privatização, mas de adequação a determinados corpos e hábitos. O habitar presente nas cadeiras colocadas nas calçadas, nos sambas e churrascos em fundos de quintal, na garagem que vira um estabelecimento comercial, nos arranjos temporários que modificam as funções de móveis e cômodos. A casa carioca é lugar de inventividade. Habitar a casa carioca é construir para si a casa carioca.


BAIXE GRATUITAMENTE O CATÁLOGO DA EXPOSIÇÃO CASA CARIOCA
Imagem de destaque: Fábio Baroli, Preto por fora, branco por dentro e sangra, 2014.
Categorias:Críticas
Que beleza. A exposição realmente traz uma perspectiva transformadora do olhar. Gostaria de ver de perto.
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