Clandestinidade e performatividade da imagem no “Cristo Vermelho” de Ducha

Na virada do século XXI, o Rio de Janeiro, assim como outras cidades do Brasil, testemunhou a proliferação de intervenções artísticas efêmeras em seus espaços públicos. A fragilidade do circuito artístico carioca na virada do século XXI fez com que artistas necessitassem criar seus próprios circuitos, atuando em espaços públicos ou criando espaços autônomos de experimentação e exposição. A década de 1990 havia sido marcada pelo afastamento do Estado no fomento à cultura, com a extinção da Fundação Nacional da Arte (Funarte), Empresa Brasileira de Filmes (Embrafilme) e Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), que, embora tenham sido restabelecidos pelos governos posteriores, passaram a atuar na realidade de um Estado que já não tinha o patrocínio direto como principal política de financiamento à cultura.[1] No mesmo período, diversas galerias cariocas fecharam suas portas, portanto, artistas e produtores culturais enfrentavam sérias dificuldades no que concerne à visibilidade de sua produção e sua sobrevivência.[2]

Uma das principais características da geração de artistas atuantes nos espaços públicos na virada do século XXI, e que a diferencia da geração dos anos 1960 e 1970 – também conhecida por sua atuação em lugares não tradicionalmente reconhecidos como espaços de arte – é seu posicionamento a favor de uma autonomia perante o sistema de arte. Alguns dos principais exemplos de inserção da arte em espaços públicos durante a ditadura militar estão ligados a figuras de críticos, curadores ou instituições de arte. Este é o caso, por exemplo, dos eventos Arte no Aterro (1968) e Domingos da Criação (1971), iniciativas vinculadas ao Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-Rio) e conduzidas pelo crítico Frederico Morais. Também é da responsabilidade de Morais a organização do histórico evento Do Corpo à Terra, que ocorreu no Parque Municipal de Belo Horizonte (MG) em 1970 e apresentou algumas das intervenções mais notórias da Geração Tranca-Ruas[3], como Tiradentes: Totem-monumento ao preso político, de Cildo Meireles, e as Trouxas ensanguentadas e Artur Barrio – trabalho que já havia integrado o Salão da Bússola, no MAM-Rio, no ano anterior.

Nos anos finais da ditadura militar, outro cenário começava a se revelar. As intervenções urbanas, em grande parte, passam a assumir um posicionamento crítico diante de questões como a retomada da pintura, o fortalecimento do mercado de arte, a ascensão das figuras do curador e do galerista, o fenômeno das megaexposições, a associação da arte ao marketing cultural de grandes empresas, além da já mencionada fragilidade do circuito artístico institucional, incapaz de acolher a todos os artistas em atividade. Um exemplo que marca essa virada na intervenção urbana é a ação realizada em 1979 pelo coletivo 3Nós3 – formado por Hudinilson Jr., Mario Ramiro e Rafael França –, chamada Operação X-Galeria, na qual o grupo lacrou com adesivo a porta de galerias de São Paulo e deixou colado, como “rastro”, um papel mimeografado com a frase: “o que está dentro fica, o que está fora se expande”. Essa ação denuncia a insatisfação com o mercado e o sistema de arte e anuncia tendências que se tornariam cada vez mais comuns, a partir da década que estava prestes a iniciar.

Já no início dos anos 2000, grupos como o carioca Atrocidades Maravilhosas seriam conduzidos por artistas universitários, recém-formados, ou vinculados aos recém-criados cursos de pós-graduação em artes visuais, que tiveram de encarar os desafios de um sistema artístico ainda assombrado pelos estigmas da década de 1990. O Atrocidades Maravilhosas, composto, em sua maioria, por jovens artistas que se encontraram na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, tornou-se conhecido pela produção de grandes painéis de cartazes lambe-lambe nas ruas, fruto do desejo de experimentar uma mídia publicitária como material artístico e testar o valor de exposição da arte contemporânea nas ruas. Uma outra característica dessa ação, que comumente se manifesta na geração de artistas e coletivos da qual faz parte, é a clandestinidade. Entende-se como clandestino aquilo que é feito às escondidas, uma ação que contraria uma lei ou uma ordem. Os cartazes que compunham a ação Atrocidades Maravilhosas eram instalados durante a madrugada, de modo a evitar um possível flagrante, uma vez que se tratava de uma atividade ilegal. A essência da ação é a zona de indiscernibilidade que produz, onde as imagens criam um ruído na lógica da propaganda e o limiar entre arte e ilegalidade é colocado em questão.

Ducha (integrando o projeto Atrocidades Maravilhosas), Coca-Coca, 2000. Impressão serigráfica sobre papel. Fonte: arquivo de Alexandre Volger.

Para além da autonomia e da clandestinidade, deve-se reconhecer o interesse que as intervenções urbanas passam a despertar em instituições artísticas e em empresas que viabilizam sua realização na década de 2000. É o caso do Prêmio Interferências Urbanas, concebido pelo artista Julio Castro e pela produtora Roberta Alencastro, que teve sua primeira edição realizada no ano 2000, contando com o apoio de parceiros como a Transurb, Furnas e Petrobras. A iniciativa é um desdobramento do evento Arte de Portas Abertas, que desde 1996 convida artistas do bairro carioca de Santa Teresa a abrirem seus ateliês para visitação pública. A abertura de portas dos ateliês tinha o objetivo de promover um contraponto à imagem de violência que vinha sendo associada ao bairro, devido aos recorrentes conflitos entre traficantes de drogas e a polícia. Com um pequeno investimento e apoio de voluntários, foi iniciado um processo de ressignificação do bairro, que mais tarde também contou com o apoio de empresas. O sucesso de público do Arte de Portas Abertas o inseriu no calendário cultural carioca e colaborou com a moldagem de uma nova imagem para Santa Teresa, que passou a ser reconhecida como polo de arte e cultura.[4]

Para o Prêmio Interferências Urbanas, foi negociada a liberação do espaço público com a subprefeitura do bairro e foi desenvolvido um edital que se comprometia em custear a produção de 10 projetos selecionados por uma comissão convidada pelos organizadores. Essa comissão foi formada, na primeira edição do projeto, pelos artistas Carlos Vergara e Ronaldo do Rego Macedo, além do crítico e curador Fernando Cocchiarale.[5]

Enquanto a maioria dos artistas contemplados pela primeira edição do Prêmio Interferências Urbanas interferia nas ruas e nos elementos arquitetônicos do bairro, um se destacou por extrapolar os limites físicos de Santa Teresa e não modificar a imagem do bairro, mas a paisagem vista a partir dele. A proposta de Ducha, um dos integrantes do Atrocidades Maravilhosas, consistia em intervir na iluminação do Cristo Redentor, colorindo o monumento com a cor vermelha.  A proposta, contudo, deveria ser aprovada pela Arquidiocese do Rio de Janeiro, que negou o pedido do artista. Ducha, contrariando a decisão da Igreja Católica, se infiltrou no monumento com a ajuda de amigos e realizou a ação clandestinamente, inserindo folhas de gelatina vermelhas sobre seus holofotes. O Cristo Redentor ficou vermelho por cerca de 45 minutos, até ser acionada a Rio Luz, empresa responsável pela iluminação de espaços públicos da cidade, que retirou a gelatina e interrompeu a intervenção.

Stills do vídeo Cristo Vermelho, 2000.

Em depoimento cedido por e-mail, o artista Geraldo Marcolini, que acompanhou Ducha em sua ação no Cristo Redentor, conta que o artista chegou ao monumento pouco antes do fim do horário de visitação – o que dificultou seu acesso ao monumento – mas conseguiu penetrar no espaço graças a uma desculpa inventada e relatada ao responsável pela segurança. Marcolini também revela:

“Quando chegamos no pátio aos pés da estátua, os últimos visitantes estavam de saída. Ducha imediatamente se meteu no mato e passamos para ele as gelatinas já recortadas no tamanho e forma dos spots e mais a fita adesiva própria para as gelatinas. Foi tudo bem rápido e um pouco tenso, apesar de serem muitos holofotes a receber a gelatina. Diria que tudo não passou de 15 minutos, e ao final das últimas aplicações já podíamos ver a estátua se tingindo de vermelho claro. Saímos como entramos, rápidos e sem levantar suspeitas, e fomos para o mirante Dona Marta apreciar o resultado da ação, onde já estava o Arthur Leandro com sua câmera”. [6]

Um dos principais pontos que chamam atenção na ação de Ducha é sua resistência à captura. Mesmo atuando em um terreno institucionalizado, o artista escapa às regras e executa sua intervenção clandestinamente, trazendo novamente – como no Atrocidades Maravilhosas – a aproximação entre arte e delito. Nessa transgressão reside uma das potências do Cristo Vermelho, que o levou a conquistar o primeiro lugar na premiação. Outro fator que sobressai na ação de Ducha é a noção de que, se a difusão de manifestações artísticas em Santa Teresa tinha como intenção inicial promover uma imagem pacificada do bairro, sua proposta ocasionava um dissenso, trazendo à tona a violência urbana e uma possível alegoria ao Comando Vermelho, facção criminosa que dominava a cidade naquele momento.  A intervenção de Ducha, no entanto, não seria um caso isolado. Diálogos imagéticos com a violência são abertos em outras ações promovidas pelo Prêmio Interferências Urbanas, como a performance de Ronald Duarte executada na edição de 2001, intitulada O Q. rola você V., onde a sonoridade do título faz referência à mencionada facção, cuja sigla é CV. Neste trabalho, Duarte percorre as ruas de Santa Teresa com um caminhão-pipa que jorra um líquido vermelho por onde passa, em alusão ao sangue que escorre pelas ruas da cidade. Acontecimentos violentos são temas comuns nas intervenções urbanas de outros artistas cariocas dessa geração, ou motes iniciais de ações que visam a explicitação de conflitos e a manutenção da coexistência de diferenças, contrariando as imagens de espaços pacificados e consensuais.

Na entrevista realizada com Carlos Vergara – um dos integrantes do júri do primeiro Prêmio Interferências Urbanas – por Julio Castro e Roberta Alencastro para o catálogo do evento, fica evidente o desejo por trabalhos de cunho crítico e que provocassem perturbações em diferentes sentidos:

“Pra mim foi indiscutível que a intervenção mais interessante era a intervenção vencedora, embora eu seja contra a competição, na medida em que ela cria uma perturbação irrefutável na paisagem real. Essa perturbação, na verdade (e talvez essa seja uma das questões fundamentais da arte), é uma perturbação no olhar, uma perturbação no ouvir, uma perturbação no entender… esta estranheza que pode despertar áreas abstratas, vamos dizer assim, áreas adormecidas na sensibilidade do espectador. Então quero aplaudir o trabalho que é feito, quer dizer, a tentativa de trabalho que é feita”. [7]

Vergara, ao avaliar o conjunto de trabalhos, declara: “eu acho que, com exceção do trabalho do Cristo, o resto foi muito tímido, e gesto tímido, o gesto artístico tímido, ele é uma indicação de direção de arte, mas ele não é uma obra de arte”[8]. Talvez a declaração do artista possa ser confrontada com uma análise dos demais trabalhos apresentados no primeiro Prêmio Interferências Urbanas, de modo a esmiuçar as especificidades de cada proposta, bem como seu caráter crítico e experimental. Esta tarefa será deixada para um escrito futuro. O que se quer aqui destacar é a valorização de trabalhos que não proponham uma mera ornamentação, ou que não sejam simplesmente colocados no espaço, mas que gerem perturbação na leitura desse espaço. É importante considerar que Vergara faz parte da já mencionada geração de artistas atuantes durante a ditadura militar no Brasil e, embora reconheça as motivações políticas que unificavam – até certo ponto – as intervenções de sua geração, e que as diferenciam daquelas realizadas na virada do século XXI, sua leitura é permeada por essa vivência.

Dias antes da intervenção de Ducha, o Cristo Redentor havia sido presenteado com um novo projeto de iluminação, durante uma cerimônia de reinauguração que fez parte das comemorações de 500 anos do Brasil. Era um momento festivo e de grande visibilidade para o monumento, que figurava em todas as mídias. Essas condições, além da alusão à violência, nos ajudam a contextualizar a proibição da ação. Embora seu projeto tenha sido vetado, Ducha inaugurou a tradição de iluminar o Cristo com outras cores, além do usual branco. Desde então, o monumento frequentemente muda de cor em celebração de datas festivas de cunho religioso ou em apoio a campanhas ligadas à saúde e conscientização social.[9]

A interrupção da intervenção de Ducha não significa seu encerramento. Na verdade, ela estava apenas começando e seu clímax ainda estava por vir. Ao concluir a “pintura”, Ducha imediatamente ligou para o Jornal do Brasil anunciando sua intervenção ao monumento e, no dia seguinte, a imagem do Cristo Vermelho estampou a capa do jornal. Dessa maneira, o artista utilizou a imprensa a favor de si, garantindo maior duração e circulação de seu trabalho clandestino e efêmero. O trabalho nasce como intervenção urbana e se atualiza ao lançar mão de um esquema da mídia tática.

Jornal do Brasil, 27 de maio de 2000. Recortes da capa e da matéria sobre o Cristo Vermelho de Ducha.

O que chamamos de mídia tática caracteriza-se pelo uso dos veículos de comunicação para fins não comerciais e subversivos. Trata-se de um conceito que se firmou na década de 1990, na Europa e Estados Unidos, para denominar práticas baseadas na lógica “faça você mesmo” (do it yourself), presente na ética punk, como estímulo para a criação de novas formas de comunicação com o público. A categoria mídia tática ganha diferentes desdobramentos no campo das artes visuais: imagens que se confundem com anúncios publicitários, mas, na verdade, não vendem nada – e em vez disso carregam conteúdo poético (como os cartazes do Atrocidades Maravilhosas); intervenções artísticas clandestinas ou com caráter de factoide nos jornais, TV, revistas e outros meios de comunicação; reapropriação crítica de signos do mundo da publicidade; ou ainda desvios e alterações efetuadas em mídias de sinalização e comunicação, como fez Ducha ao transformar a imprensa em veículo de uma intervenção artística. As relações entre arte contemporânea e mídia tática são abordadas com maior aprofundamento em outro artigo, intitulado Mídia tática como conceito operativo nas artes visuais (leia aqui).

Partindo do viés da mídia tática, podemos compreender a ligação de Ducha para o Jornal do Brasil como um ato performativo. A circulação do Cristo Vermelho na capa do jornal, portanto, não seria um objeto secundário em relação à intervenção realizada no monumento, mas o real propósito da ação, que foi desde o princípio pensada como imagem – a ação foi desenvolvida para ser registrada e propagada pela imprensa

Embora realizada clandestinamente, matérias publicadas em jornais dias antes já anunciavam a ação que seria realizada pelo artista e revelavam sua identidade. Uma matéria de Ana Cecilia Martins publicada no Jornal do Brasil no dia 22 de maio de 2000, intitulada Uma geografia artística, anunciava a realização da 9ª edição do evento Arte de Portas Abertas, que naquele ano incluiria intervenções urbanas. O texto revela detalhes sobre os trabalhos de alguns dos 15 artistas que fariam de Santa Teresa um “museu a céu aberto”, entre eles Ducha:

“O artista Ducha também irá mexer com a imagem do Redentor. Seu projeto consiste em colocar uma gelatina vermelha na iluminação do Cristo. “Para interferir na paisagem da cidade e na paisagem de Santa Teresa, cujo pano de fundo é o Cristo Redentor”, diz o artista. O projeto ainda espera liberação da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro”. [10]

Para evitar ser pego em flagrante, Ducha antecipou sua ação, realizando-a um dia antes daquele anunciado no jornal. A intervenção foi realizada no dia 26 de maio de 2000 e no dia seguinte a imagem do Cristo Vermelho circulou na capa do Jornal do Brasil. A matéria revelava a identidade do artista, além de relatar detalhes sobre o caso:

“A Cúria Metropolitana do Rio não liberou, mas o artista plástico Ducha, num ato rebelde, resolveu desafiar a determinação da Igreja Católica, cobriu os refletores com gelatina vermelha e pintou o Cristo Redentor”. [11]

Na mesma data, uma matéria foi publicada no jornal O Globo assinada por Letícia Matheus. Nesse veículo, entretanto, não há imagem da intervenção e o artista é identificado apenas como “um estudante de artes plásticas”. A matéria apresenta o depoimento do presidente da Rio Luz, que revela sua visão sobre o caso:

“Uma equipe da Rio Luz, empresa que ilumina os espaços públicos na cidade, foi acionada para retirar a gelatina.

– A luz é um agente poderoso. Não se pode usá-la para descaracterizar a obra de um artista. A luz não pode se sobrepor à estátua do Cristo – criticou o presidente da Rio Luz, Luiz Canosa Miguês, ferrenho defensor da nova iluminação do Corcovado, totalmente branca, inaugurada em 23 de abril como parte das comemorações dos 500 anos do Descobrimento.

O presidente da Rio Luz revelou que, há cerca de 20 dias, foi procurado por uma mulher que se identificou como curadora da mostra “Arte de Portas Abertas”, realizada em Santa Teresa. Ela apresentou a proposta de um estudante de artes plásticas de iluminar o monumento com o vermelho da Paixão de Cristo. A proposta foi vetada, depois de uma consulta à Arquidiocese. Mas, pelo jeito, o veto foi descumprido ontem.

– Se foi uma manifestação artística performática, foi medíocre – criticou Miguêz”. [12]

Em 1979, quando o grupo paulista 3Nós3 cobriu a cabeça de estátuas em espaços públicos com sacos de lixo – como se fazia em torturas por asfixia durante a ditadura militar – integrantes do coletivo tomaram uma atitude semelhante à de Ducha ao ligar anonimamente aos principais jornais de São Paulo, fazendo-se passar por cidadãos perplexos com aquele suposto ato de vandalismo. Dessa maneira, o trabalho clandestino intitulado Ensacamento, realizado de madrugada e destruído horas depois, sobreviveu nas páginas dos jornais e alcançou um público maior. O 3Nós3 se apropriou da mídia de massa para seu próprio benefício. O grupo estrategicamente fez com que os jornais financiassem a impressão e distribuição de seu trabalho, considerando o alto custo que teria a reprodução de fotografias com a mesma tiragem se realizada pelos próprios artistas.

Ducha, Cristo Vermelho, 2000. Fotografia e edição: Marssares.

Há muitas semelhanças com o caso de Ducha, como a clandestinidade da ação, a ligação realizada para os veículos de comunicação e a utilização da mídia impressa em uma tática de circulação de seu trabalho, eliminando custos e dificuldades na distribuição. A grande diferença é o anonimato, que se faz presente de forma relevante na ação do 3Nós3, mas não existe na intervenção de Ducha, que é anunciada dias antes, fazendo com que a ação seja associada a seu nome quando publicada nos jornais. Não se sabia ao certo do que se tratava, ao lidar com as estátuas encapuzadas do 3Nós3. Naquele momento, intervenção urbana não era assunto em grande discussão nas mídias Brasileiras e a ação foi tomada como ato de vandalismo, de motivação misteriosa. Ao lidar com o trabalho de Ducha, 21 anos depois, os jornais a apresentam como manifestação artística, além de revelar o artista por trás daquele ato. Isso, contudo, não diminui o caráter subversivo de sua ação, que contraria autoridades e é realizada na clandestinidade. Tal subversão se estende para a apropriação que o artista faz da imprensa, que passa a servir a seus interesses.

Além dos jornais, um vídeo que registra toda a ação de Ducha compõe a coleção de DVDs Circuitos Compartilhados, organizada por Newton Goto. Trata-se de um acervo de vídeos e filmes que contém 225 títulos de 87 ações de artistas e coletivos, em grande parte brasileiros. O projeto gerou 35 DVDs com mais de 44 horas de duração e é um desdobramento da pesquisa realizada por Goto desde 2000 sobre circuitos autodependentes de artes visuais. Ducha também participou do 27º Panorama da Arte Brasileira do Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 2001 – a mesma edição que contou com a participação do Atrocidades Maravilhosas e de outras iniciativas coletivas de artistas. Assim como o Atrocidades Maravilhosas, Ducha foi convidado a publicar uma intervenção no livro do Panorama.[13] A participação do artista se deu por meio de uma fotografia do Cristo Vermelho.

Algumas imagens disponíveis do Cristo Vermelho são falsas, inclusive a fotografia presente no livro do Panorama. Uma imagem do Cristo Redentor foi manipulada pelo próprio artista e acabou servindo de ilustração para sua ação, que teve curta duração e pouca chance de ser registada. Tal montagem configura um desdobramento do trabalho, é uma criação distinta que assume sua potência e autonomia como imagem artística.

3Nós3, Ensacamento, 1979. Fonte: catálogo da exposição Retroperformance – CAIXA Cultural RJ, 2017.

Em 2008, o artista repetiu a intervenção no monumento para que pudesse finalmente registrá-la. A fotografia que circulou na capa do Jornal do Brasil é uma das poucas que realmente captam a intervenção de Ducha no ano 2000. Tal como a imagem manipulada pelo artista, ela exerce performatividade e se desdobra em outro acontecimento.

O que o pesquisador norte-americano Philip Auslander (2019) chama de performatividade do registro é quando o ato de documentar um evento é o que constitui o trabalho artístico como tal. A performatividade da documentação ocorre quando assumimos que as imagens não simplesmente descrevem algo que ocorreu; elas produzem um evento artístico. Essa condição torna-se mais clara em intervenções cuja visibilidade é mediada pela imagem, como a de Ducha, que teve curta duração no espaço público. O que potencializou o valor de exposição do Cristo Vermelho foi a imagem manipulada pelo artista e, sobretudo, sua circulação na imprensa. A imagem não possui apenas caráter de índice, de prova, mas configura-se como um novo objeto estético. A performatividade do registro da intervenção urbana já foi objeto de discussão em um artigo publicado anteriormente, intitulado Documentação e iconização do efêmero: arte contemporânea e intervenção urbana (leia aqui).

Além da possibilidade de estender a duração de um trabalho efêmero e fazê-lo circular, ao ligar para o Jornal do Brasil, Ducha apropria-se do poder da mídia de massa para lhe atribuir valor e legitimidade, como conta a crítica de arte Marisa Flórido Cesar:

“Cristo vermelho parece transitar entre as várias concepções e abordagens relacionadas à tradição escultórica e sua migração ao campo ampliado: intervém fisicamente em um monumento e seu lugar, infiltra-se estratégica e criticamente na rede de circuitos discursivos em diversos campos de poder, como nas instituições (religiosas, estatais, artísticas) e na mídia. Se “público” tornou-se o campo midiático no qual a natureza de um fato é determinada e legitimada, Ducha realiza a ação buscando ganhar representação justamente aí. Se a mídia tem poder de conceber valor de verdade, ainda que por quinze minutos, como legitimar algo como arte além de seu protegido circuito?” [14]

A lógica “faça você mesmo”, que conduz os esquemas de mídia tática, se difundiu na década de 1960, quando o lançamento de tecnologias de comunicação baratas e fáceis de usar possibilitou a expressão de indivíduos que se consideravam mal representados pelos veículos de comunicação de massa. Com o surgimento e popularização de máquinas fotocopiadoras, filmes super 8 e 16mm, offset e equipamento portátil de vídeo, originaram-se novas formas de arte tecnológica, que expandem o campo das artes para interfaces como o desenho industrial, a publicidade, o cinema, a televisão, etc. Ao mesmo tempo, a arte passou a necessitar de tais meios para sua própria divulgação, lançando mão, por exemplo, de materiais publicitários, reproduções coloridas, catálogos e entrevistas cedidas por artistas em programas de rádio e TV. Segundo Lucia Santaella, as mídias passam a desempenhar cada vez mais um papel crucial no “sucesso de uma carreira” e, por isso mesmo, artistas buscam manipular e controlar suas imagens e disseminação de suas obras em veículos de comunicação.[15]

As mídias de massa se aliam às exposições blockbuster, que no Brasil surgem a partir da década de 1990. Grandes mostras organizadas por instituições privadas e órgãos governamentais são amplamente divulgadas enquanto outra produção se mantém à margem desses meios e mesmo do circuito artístico. Táticas como a de Ducha fazem circular na mídia trabalhos que normalmente não recebem tamanho destaque.

Conclui-se que a mesma fragilidade do circuito que levou artistas a atuarem em espaços públicos e a criarem seus próprios espaços na virada do século XXI, fez com que esses artistas adotassem usos subversivos das mídias de massa, uma vez que estas também não lhe garantiam espaço privilegiado. Tais usos, táticas, constituem desdobramentos em seus trabalhos artísticos, o que caracteriza suas ações, mais do que meios de divulgação, como condutoras de performatividade e sobrevivência da imagem.


Notas

[1] ALBUQUERQUE, Fernanda. Trocas, soma de esforços, atitude crítica e proposição: um reflexo sobre os coletivos de artistas no Brasil (1995 a 2005). Dissertação (Mestrado em Artes Visuais). Porto Alegre: UFRGS, 2006.

[2] ANDRADE, Luis. RIO 40º fahrenheit. Concinnitas, Instituto de Artes da UERJ, Rio de Janeiro, n. 5, pp. 127-149, 2003.

[3] Nomenclatura cunhada pelo crítico Francisco Bittencourt em referência aos artistas que participaram do evento Do Corpo à Terra em 1970.

[4] ALENCASTRO, Roberta; CASTRO Julio. Perdidos no Espaço no FSM, 2003. Prêmio Interferências Urbanas – Arte efêmera no cenário de Santa Teresa. Disponível em: http://www.ufrgs.br/escultura/fsm/jornal/santa_teresa.htm. Acesso: 23/08/2020.

[5] ALENCASTRO, Roberta (coord.). Interferências urbanas. Rio de Janeiro: Arte de Portas Abertas, 2000.

[6] MARCOLINI, Geraldo. Depoimento cedido ao autor via e-mail. 17 de janeiro de 2018.

[7] VERGARA, Carlos apud. ALENCASTRO, Roberta (coord.). Interferências urbanas. Rio de Janeiro: Arte de Portas Abertas, 2000, p. 4.

[8] Idem.

[9] SOUTO, Luiza. Luzes do Cristo deixam noites do Rio mais coloridas. Folha de São Paulo (online), Cotidiano, 3 de julho de 2011. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff0307201119.htm. Acesso: 23/08/2020.

[10] MARTINS, Ana Cecilia. Uma geografia artística. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Caderno B, p. 3. 22 de maio de 2000, p. 3.

[11] JORNAL DO BRASIL. Cristo pintado de vermelho. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Cidade, p. 20. 27 de maio de 2000, p. 20.

[12] MATHEUS, Letícia. Cristo Redentor fica vermelho por 45 minutos. O Globo. Rio de Janeiro, Rio. 27 de maio de 2000, p. 24.

[13] O 27º Panorama da Arte Brasileira promoveu o lançamento de duas publicações: o catálogo da mostra e um livro, composto por imagens, entrevistas e textos, como maneira de incluir na exposição, ainda que por meio de uma publicação, iniciativas que ultrapassavam o território do museu.

[14] CÉSAR, Maria Flórido. Nós, o outro, o distante na arte contemporânea brasileira. Rio de Janeiro: Circuito, 2014, p. 35.

[15] SANTAELLA, Lucia. Por que as comunicações e as artes estão convergindo? São Paulo: Paulus, 2005.

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