Trataremos aqui da violência contra as imagens. Mais especificamente da destruição de monumentos públicos e de possíveis significados desse gesto. Para tanto, é importante pontuar brevemente a relação entre imagem, morte e memória, que remonta às primeiras experiências de produção de visualidades e ainda permanece no cerne da imagem como potência simbólica.
No Egito Antigo, quando morria um soberano, havia o costume de sepultar com ele seus serviçais, para que continuassem a lhe servir durante a eternidade. Mais tarde, esses corpos sacrificados passaram a ser substituídos por imagens, corpos artificiais. Também nessa civilização, a mumificação era um meio de preservação do corpo sagrado do faraó, mas a conservação de sua aparência era igualmente necessária para garantir a continuidade de sua existência por toda a eternidade e, para isto, mandava-se esculpir a cabeça do monarca e a depositavam na tumba, longe do olhar dos outros, onde poderia operar sua magia e manter viva a alma do falecido. A palavra egípcia para designar o escultor significava “aquele que mantém vivo”. Vemos, portanto, como a ideia de imagem estava ligada aos conceitos de sobrevivência e sobrevida, como meio de preservar o corpo e lhe permitir continuar a cumprir sua função em outro plano. Mas a relação entre imagem e morte, ou a função das imagens de simular um corpo ausente, não se restringe à cultura dos antigos egípcios. Ela se faz presente de forma generalizada no mundo, inclusive nos dias de hoje. A própria palavra latina “imago” tem sua origem em práticas funerárias e, portanto, na experiência da morte e do desaparecimento. Imago designava as máscaras mortuárias, comuns no império romano, que preservavam traços dos mortos – geralmente de famílias aristocráticas – para que pudessem ser lembrados, garantindo-lhes uma sobrevida simbólica.
Dito isso, levantamos o seguinte questionamento: o que se quer aniquilar quando se destrói a imagem de uma pessoa? E mais: para quem e para que essas imagens são erguidas em espaços públicos?

A derrubada de monumentos, tão recorrente em manifestações políticas, ainda é alvo de polêmicas. Recentemente, um grupo de manifestantes na Inglaterra, durante um protesto antirracismo, derrubou uma estátua de Edward Colston, traficante de escravos e membro do Parlamento britânico que viveu no século 17 – e que dá nome a pelo menos 20 estradas em Bristol, além de escolas, prédios e hospitais. Colston era sócio da Companhia Real Africana, responsável por traficar mais de 84 mil pessoas para serem escravizadas nas Américas, dentre as quais 19 mil morreram durante a travessia. Em 2019, ao longo da onda de protestos que tomou conta do Chile, manifestantes danificaram pelo menos 329 monumentos públicos, sendo o caso mais emblemático a derrubada do monumento em homenagem ao colonizador espanhol Francisco de Aguirre, sendo instalada em seu lugar, pelos próprios manifestantes, a escultura “Milanka”, em homenagem à mulher da cultura indígena diaguita. No Brasil, tivemos em 2016 o caso da pichação no controverso “Monumento às Bandeiras” de Victor Brecheret, localizado em frente ao Parque Ibirapuera em São Paulo. Embora a escultura seja entendida como um símbolo do progresso, sabe-se que os bandeirantes foram responsáveis por violentas expedições no território paulista e tinham como prática a escravização de povos indígenas. Hoje questiona-se por que esses monumentos foram erguidos, em benefício de quem foram produzidos e por que sua presença foi naturalizada.
Podemos afirmar que o que se quer aniquilar nesses casos de violência contra monumentos é o poder que toma para si o monopólio da imagem e sua significação. A filósofa francesa Marie-José Mondzain afirma em uma entrevista (leia aqui) que todo poder tem suas imagens e recusa ao contra-poder ter sua visibilidade, interrompendo a busca icônica do outro. Em outras palavras, a imagem confere legitimidade, visibilidade, e quem detém o controle de sua produção e circulação pode jogar à margem as representações que interferem em sua hegemonia. Como exemplo, podemos citar a perseguição de todas formas de cultura material e imaterial de origem africana pela igreja católica no Brasil durante o processo de colonização – e além – que gera reverberações até os dias de hoje. Em suas pesquisas, Mondzain trata da iconoclastia no Império Bizantino, quando o imperador, consciente do poder da imagem, privava dele a igreja, proibindo representações bíblicas, e reservava para si a exclusividade e benefícios da imagem. Reações similares à imagem remontam a, pelo menos, o Antigo Egito, quando o faraó Tutmés III ordenou que destruíssem as estátuas de sua antecessora Hatchepsut, como maneira de legitimar seu poder. Ou quando outro faraó, Akhenaton, desafiou o sistema religioso politeísta vigente ao substituir todo o panteão de deuses por uma única divindade: Atón, o deus Sol, e para obter êxito em tal objetivo ordenou que fossem destruídas as imagens dos outros deuses.
A negação e a subsequente destruição da imagem acabam por reforçar sua potência: a imagem é aniquilada pois é reconhecido o seu perigo. Recusa-se a imagem justamente por haver consciência do poder que ela possui para a configuração de um imaginário coletivo, como no contexto das manifestações aqui abordadas. Monumentos imortalizam a história e a memória, evocam o passado, perpetuam uma recordação para gerações futuras. São instrumentos políticos, manipulados e conservados por quem detém o poder de produção e circulação imagética com o esforço de impor ao futuro determinada narrativa visual. A história que nos permitem conhecer é a dos vencedores, a dos grandes nomes, sendo deixadas à margem outras memórias que nos constituem como nação ou como grupos sociais.

O teórico da cultura visual W. J. T. Mitchell, no texto “O que as imagens realmente querem?”, considera que estamos presos a atitudes mágicas e pré-modernas diante de objetos e, em particular, diante de imagens. Uma aura lhes é atribuída e até mesmo historiadores da arte, com plena consciência de que estudam objetos materiais marcados por cores e formas, falam e agem como se as imagens tivessem sentimentos, vontade, consciência, agência e desejo. Qualquer pessoa relutaria em destruir a imagem da própria mãe, mesmo sabendo que se trata apenas de um objeto, e não da pessoa em si. O mesmo raciocínio se apresenta no corriqueiro hábito de queimar ou rasgar a fotografia de alguém após uma briga – ou, o que é mais comum hoje em dia, deletar as imagens e o perfil da pessoa das redes sociais, como um ato de violência contra um corpo virtual, substituto de um corpo real.
Em diferentes escritos, o historiador da arte alemão Hans Belting defende a separação entre imagem e mídia. Imagem, para Belting, é um produto mental, que para adquirir visualidade necessita de uma mídia: uma pintura, uma escultura, um filme, etc. Podemos compreender melhor essa cisão entre imagem e mídia a partir do exemplo do sincretismo religioso, quando imagens esculpidas para representar uma divindade são reapropriadas por outra cultura – geralmente uma cultura colonizada, que tem sua produção de imagens interditada e por isso reapropria as imagens produzidas e impostas pelo colonizador. A imagem produzida pela cultura dominante passa a ocupar o lugar de outra entidade, da cultura do colonizado, mesmo que não seja alterada morfologicamente. A imagem mental é transmitida para o meio físico disponível.
Belting associa a mídia ao corpo. Para adquirir qualquer forma de visualidade, a imagem necessita de corporificação, portanto, o corpo perdido (de uma pessoa morta, por exemplo) é trocado pelo corpo virtual da imagem por meio de um procedimento simbólico. Por imagem, Belting entende aquilo que torna uma ausência visível, ao transformá-la em uma nova forma de presença – ela é a presença de uma ausência.
No artigo “Imagem, mídia e corpo: uma nova abordagem à iconologia”, Belting afirma que os iconoclastas, em suas manifestações ao longo da história, queriam eliminar a imagem da imaginação coletiva, mas só conseguiram destruir seus suportes. Imagens físicas eram atacadas para extinguir imagens mentais, pois acreditava-se que o que as pessoas não pudessem ver deixaria de existir em sua imaginação. Tal questão é abordada por Belting também no livro “A verdadeira imagem”, onde o autor afirma que a imagem é, por natureza, representante vicária. Em sua presença pública, imagens representam instituições que dela se servem, mas quando são impostas a uma sociedade, esta pode se vingar na primeira ocasião, virando-se contra as autoridades que desfrutavam do poder de decisão sobre as imagens, como ocorre nos casos de destruição de monumentos públicos. A violência contra as imagens testemunhada em diferentes manifestações políticas tem como alvo não a arte e o patrimônio em si, mas as instituições, os poderes que os monumentos representam.

Tal atitude, em tempos de revisionismos históricos, revela a inconformidade ou o não-reconhecimento da legitimidade de imagens impostas como objetos de memória. A derrubada de monumentos opera como queda simbólica do sujeito ou da memória por ele representada. Ela sacia um desejo real por meio de um corpo simulado, artificial, e busca interferir naquilo que torna visível e glorifica uma imagem indesejada, violenta, autoritária.
Ao mesmo tempo, novas memórias são cultivadas. Um exemplo recente é a contratação da artista Vinnie Bagwell para criar uma obra pública para o Central Park, substituindo a estátua de. J. Marion Sims, ginecologista do século XIX que fez experiências com mulheres negras escravizadas para alcançar seus avanços médicos. A escultura de Bagwell, intitulada Victory Beyond Sims, de 5 metros e meio, representa uma mulher negra com asas, como uma alegoria da vitória.
A efetiva destruição de monumentos públicos é um assunto a ser debatido com cuidado. Um ponto a ser considerado é sua remoção e transferência para museus, e não necessariamente sua aniquilação, tendo em vista o valor histórico desses objetos e seu significado como representantes de determinados períodos. Mais do que peças comemorativas, esses artefatos são também documentos. Mas não é o objetivo deste texto se aprofundar nessa questão, e sim nos significados e desejos implícitos ou explícitos na derrubada de monumentos públicos.
Diante da objetividade dos percursos cotidianos e da desconexão entre corpo e cidade característica da contemporaneidade, monumentos públicos são encarados como ornamentos, sendo abafado seu caráter político. A falta de identificação da população com essas imagens é outro fator que culmina em seu desprezo ou sua potencial invisibilidade. Novos meios de produção e circulação de imagens e de memórias contribuem para a reinterpretação e ressignificação de eventos históricos e para a quebra do monopólio das imagens. Deve ser reconhecido o papel das mídias sociais nesse fenômeno, uma vez que permitem a qualquer sujeito se colocar na função de autor e que imagens sejam compartilhadas massivamente em quantidade e velocidade nunca antes vistas. Faz-se evidente a demanda por novos signos que expressem pertencimento e operem de acordo com ideais democráticos, sobretudo em países colonizados, cujas histórias são marcadas pela violência, pela dominação e pelo epistemicídio.

– Leia mais no artigo “Homens de bem contra imagens do mal” e na dissertação de mestrado “Entre a (auto)destruição e a sobrevivência da imagem: intervenção urbana, mídia tática e a performatividade do registro do efêmero“.
Texto muito bom e gostei das referências, já estou com uma aba aberta no navegador as procurando. Acho que essa “separação entre imagem e mídia”, por Hans Belting, pode agregar ao que tenho pensado como “todas fotografias são abstratas” (um primeiro ensaio foi publicado neste link: http://www.macrofotografia.com.br/abstracao-na-fotografia).
Abs e site adicionado à barra de favoritos por aqui!
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Excelente texto para reflexão.
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