Não existe coisa mais íntima que um cu, nem mais pública do que colocá-lo na rua

Em abril do ano 2000, o Atrocidades Maravilhosas iniciava sua primeira ação no Rio de Janeiro. Vinte artistas saíam pelas ruas da cidade, de madrugada, colando centenas de cartazes que formavam imensos painéis em grandes vias e áreas de intensa movimentação de transeuntes. Os cartazes apresentavam imagens desenvolvidas a partir da pesquisa individual de cada artista, mas a proposta era comum: ocupar espaços públicos com arte, se apropriando de uma mídia comumente utilizada pela publicidade, e experimentar o potencial do trabalho artístico na rua, quando está em contato direto com milhares de pessoas diariamente.

Os artistas que participaram do Atrocidades Maravilhosas tinham autonomia para decidir o local onde se realizaria a colagem de seus trabalhos. O paraense Arthur Leandro, diferente da maioria, preferiu não colar seus cartazes em muros, mas na rampa de acesso do estádio do Maracanã.

Os cartazes de Arthur Leandro apresentavam uma fotografia de seu cu, em torno da qual se lia as inscrições “círculo/privado/esfera/pública”, que também dão título a seu trabalho. No filme Atrocidades Maravilhosas, que documenta a ação do grupo, o artista cede um depoimento afirmando que “não existe coisa mais íntima que um cu, nem mais pública do que colocá-lo na rua”.

Além de trabalhar com a antinomia público-privado, o artista cola seus cartazes sobre uma base que não é totalmente vertical, mas também não é totalmente horizontal. A escolha pela rampa de acesso do estádio do Maracanã não é gratuita. Os cartazes foram colados na véspera de uma partida entre Flamengo e Vasco, que ocasionaria grande movimentação naquele espaço, garantindo maior visibilidade à intervenção. Mas não só o valor de exposição é um fator determinante para a escolha daquele lugar, como também seu valor simbólico. Enquanto o futebol é culturalmente associado ao gênero masculino, o cu é associado a uma não-identidade masculina. Portanto, o trabalho de Arthur Leandro incorpora questões do local onde é instalado e o artista ocupa o espaço público com a imagem de seu corpo, de forma provocativa, questionando papéis de gênero e causando um ruído naquele ambiente.

O trabalho de Arthur Leandro acontece a partir de várias tensões: entre público e privado, verticalidade e horizontalidade, arte e publicidade, além de abordar questões identitárias, de gênero e sexualidade. Abdicando de qualquer pudor, Arthur Leandro ataca a moral espalhando lambe-lambes pela cidade (ato proibido por lei) que expõem a parte mais marginalizada e desprezada do corpo humano, comumente vista com asco e nojo. Ao levar o que há de mais privado em seu corpo para o espaço público, utilizando uma mídia publicitária e o artifício da repetição, o artista rompe com qualquer ideia de privacidade, banaliza seu corpo, sua intimidade, por meio de uma publicidade que não vende nada, mas apenas a afronta as normas, o decoro e a cultura machista.

Artista, professor, arquiteto, fundador do grupo Urucum (no Macapá) e militante pela cultura afro-brasileira na Amazônia (além de outros tantos títulos que não sou capaz de enumerar), Arthur Leandro faleceu no dia 15 de maio de 2018. Dedico este texto à sua memória.

Arthur Leandro

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